RUGIDO VERDE

Levantar e levantar de novo, até que os cordeiros se tornem Leões!

Sexta-feira, Abril 26, 2024

Neste dia… em 1946, reviravolta épica na quinta vitória consecutiva sobre os «encarnados»

Após canto apontado por Albano, o guarda-redes do benfica embrulha-se com o esférico fazendo auto golo.

Começou a notar-se o dedo de Cândido de Oliveira no Sporting. Na sétima jornada do Nacional, primeira vitória infligida ao Benfica, que no Lumiar, estivera a ganhar por 3-0, permitindo, contudo, que em apenas 25 minutos os «leões» apontassem quatro golos. Era a quinta vitória consecutiva sobre os «encarnados» e a subida fulgurante, ao segundo lugar, com o Olhanense por perto, mas ambos a três pontos do Belenenses.

Da alegria de jogo do Benfica à bomba atómica do Sporting

Por Tavares da Silva

Não estamos a sonhar! Já esfregamos os olhos, e temos perguntado toda a gente que topamos no caminho.

Não há dúvida, Sempre é verdade. Pelo menos, tudo leva querer que seja verdade. Na tarde friorenta de 20 de Janeiro de 1946, uma data que não se apagará tão cedo da memória dos adeptos da bola, defrontaram-se os dois Históricos, tendo sucedido uma coisa singularmente estranha e espantosa: O Sporting vencer o Benfica por 4-3, subindo a pulso na Tabela depois do Benfica estar a ganhar por 3-0 nos primeiro 20 minutos. Aos que não acreditam, como nós não acreditaríamos se não víssemos, diremos que, no jogo desportivo que se chama futebol, tudo é possível.

Os desafios decorrem algumas vezes como nós imaginamos, e quase sempre de uma forma que excede a mais ousada imaginação. Quem havia de dizer que a magnifica luta do Lumiar, com todas as prendas do futebol, se passava como se passou. Um Benfica com três bolas na mão, como que por artes mágicas! Um Sporting que reagiu e transformou por completo a situação, de vitima a tirano, alcançando e ultrapassando o número das três bolas! Reparem nisto. O Benfica meteu três bolas nas balizas pintadas de verde. Já é estranho, não é verdade? Pois o Sporting ainda teve forças para fazer a barragem da torrente caudalosa e marcar por sua vez outras tantas e mais uma, precisamente a da vitória. Ora, isto é ainda muito mais estranho, não lhes parece? São estes desafios, belos, grandiosos, incertos, emocionantes, de uma vibração de contágio, que arrastam à multidão para o jogo, à melhor coisa deste Mundo!

O mais belo encontro dos últimos tempos deu-nos, em uma primeira face, a meia hora de começo, por exemplo, a alegria, a vivacidade e o colorido do futebol do Benfica, talvez o jogo menos pautado, modernamente, do futebol português. Os Diabos Vermelhos não estão na Bélgica, mas em Portugal. Há naquele grupo qualquer coisa diferente dos outros, que nos provoca uma sensação intraduzível. Temos, por vezes, a impressão de que todos os movimentos dos jogadores são indisciplinados, sem rei nem roque, e temos no fim a surpresa de verificar que tudo resulta certo, e que os desenhos são construidos por artistas de fantasia mas que sabem o que estão a fazer. O futebol benfiquense é alegre como a cor da camisola, vivo e quente.

Foi simplesmente admirável a forma como a linha avançada dominou, em campo, no período de início. O pequeno Arsénio, tipo de gavroche, como que ardendo de febre, impulsionou todo o jogo à força de rapidez e da boa construção de triângulos. Por outro lado, Espírito Santo, no centro do terreno, era o jogador de garra, com lances que devem considerar-se modelos de futebol. Jogadas para escrever no quadro, servindo de exemplificação aos rapazes que começam a vida de praticante. Todos os outros dianteiros ligavam bem. A linha média, sem grandes rasgos, cumpria. O último reduto do Benfica jogava mesmo tranquilamente, tão pouco inquietado era. Ainda por cima os três goals resultaram de jogadas limpas. Tudo era puro, neste futebol!

– A reacção fez-se de chofre, e veio a outra face. A massa sportinguista teve a percepção de que somente um grande esforço, uma destas páginas que ficam na história do clube, conseguiria o milagre. Caso contrário, seria o afundamento total e trágico! A sua vibração estabeleceu uma corrente eléctrica de fora para dentro do campo, e produziu-se então o fenómeno futebolístico do desafio dar a volta. Deu a volta, e bem firme. Tudo mudou, como na velha poesia do estudante alsaciano.

O Sporting cresceu, e os onze transformaram-se em muitos mais, que irrompiam, não sabemos por que segredo, de todos os lados do terreno em direcção às redes benfiquenses, já com as brechas na muralha defensiva reparadas, e tendo organizado o ataque, o grupo leonino ficou senhor da situação, devendo destacar-se a contribuição valiosa do seu médio-centro, esse magnifico Barrosa, sólido e atlético, que resolveu muitos problemas e ampliou ainda a resolução de muitos outros. Algumas jogadas duvidosas nas balizas de Martins, aqueceram mais fortemente, se possível, o temperamento e o estado colectivo dos sportinguistas. As duas bolas conquistadas na primeira parte pelos leões foram um bálsamo. Não fosse isso, e temos a impressão que o campo teria ido pelos ares. O pior era depois à reconstrução!

Peyroteo assinala o 2º golo do Sporting.

Quando o Sporting cresceu, calculámos que a linha média do Benfica iria resistir como é de sua tradição e está no hábito de lutadores como Moreira e Francisco Ferreira. Mas a verdade é que a célula medular, o fulcro de que tudo depende o jogo da frente como o que se passa nas linhas atrasadas, deixou-se afogar, como que desaparecendo do terreno. Só Jacinto, o mais novato e o menos categorizado, se defendeu e comportou como os cavaleiros medievais, entregando-se apenas ao ser dada ordem de cessar luta. Belo rapaz! Há no comportamento da linha medular benfiquense qualquer coisa que escapa à nossa observação, por enquanto. Por repercussão, a parelha de defesas não esteve à altura do acontecimento, apesar de Cerqueira, já com mais planta, ter sido um infatigável trabalhador.

No caminho para a segunda parte, o Sporting levava já consigo a força da vitória. Era de antemão um triunfador. A sua reacção fora tão impressionante e o seu jogo subira tão alto, que, dada a descida do Benfica, o grupo bem tinha a certeza de que a sua obrigação era atacar e de que dificilmente à vitória, através das maiores vicissitudes, lhe poderia fugir. Todo o grupo se ligou na ideia de atacar; e os avanços sucederam-se com frequência.

O avançado-centro não se deixou marcar e conseguiu orientar o ataque como mestre que é, os interiores transportaram muito bem o jogo e os extremos abordaram com eficácia e rapidez, especialmente esse fenómeno que é Albano, grande como os que o são pela habilidade de pés e pela forma como se entrega à luta e como insiste teimosamente em não se deixar bater ou dominar. Repetimos. Todos os jogadores do Sporting jogaram muitíssimo bem (a defesa perdeu, pelo tempo adiante, o ar incerto de começo), surgindo o grupo que actua como bloco, rolando no terreno e esmagando tudo na sua passagem. O Sporting foi, no estádio do Lumiar, uma bomba atómica.

Ontem, no fim da primeira parte, lado do Sporting, como depois, mais tarde, no termo do desafio, lado do Benfica, não éramos capazes de dizer bem da arbitragem do veterano Canuto. A multidão, quando irada, não ouve ninguém e não atende à razão, parecendo-lhe ver em todas as decisões do árbitro verdadeiras monstruosidades. Hoje, mais calmamente, decerto alguns já se convenceram que exageraram no juízo. Certamente, Carlos Canuto não produziu uma arbitragem perfeita, e seria muito difícil fazê-la no ambiente de exaltação da partida e até por terem surgido no seu decorrer casos bicudos. Vá lá convencer-se alguns sportinguistas, a estas horas ainda, que a bola que bateu no canto da trave não chegou a entrar como, aliás, é nosso convencimento, e convencer também vários benfiquenses de que as sentenças duvidosas do segundo tempo não foram geradas pelo desejo de agradar à massa associativa do Sporting. A verdade, pura e simples, é que desafios deste género nem o Diabo os quer para arbitrar, porque é difícil o juiz não sair chamuscado do fogo que arde dentro e fora do campo. Por isso, não hesitamos em dar uma nota digna à arbitragem. O jogo foi demasiadamente belo para ser perturbado seja pelo que seja!

Fonte: Jornal Diário de Lisboa

Nesse jogo alinharam pelo Sporting: João Azevedo (GR); Álvaro Cardoso, Manuel Marques, Carlos Canário, Octávio Barrosa, António C. Lourenço, Armando Ferreira, Luís Cordeiro, Fernando Peyroteo, António Marques, Albano Pereira.

Treinador: Cândido de Oliveira

Golos: Peyroteo (44 e 56 min), António Marques (68 min) e auto-golo de Martins (Benfica) (42 min) (Sporting) ; Rogério (8 min), Espírito Santo (10 e 21 min) (Benfica)

Data: 20/01/1946
Local: Stadium de Lisboa, no Lumiar
Evento: Sporting (4-3) Benfica, CN 7ª Jornada

Artigos relacionados

Comments

Leave a Reply

XHTML: You can use these tags: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>