RUGIDO VERDE

Levantar e levantar de novo, até que os cordeiros se tornem Leões!

Quinta-feira, Abril 25, 2024

A Pirâmide do Terceiro Olho

Estamos num mundo distópico, cada vez mais. Não me apetece muito tratar dele, nem de futebol – um dos expoentes dessa distopia (o clássico com o FC Porto foi jogado este Sábado em Alvalade, à porta fechada, poucos dias depois do jogo entre as selecções de Portugal e Suécia, com algum público, menos de 5 mil pessoas, nas bancadas, e desconheço no momento em que escrevo isto, como correu e o seu desfecho. E a análise ao jogo é feita noutra crónica, por outro autor, o Xico do Topo Sul, está bem entregue).

Vou falar de um pequeno país da fantasia. Um país de propagandistas, mentecaptos, lambedores de botas (e de bolas) e detractores. De demagogos, charlatões, falsos profetas e populistas. Com muitos chicos-espertos e bruxas pelo meio. Patos-bravos, caciques e barões conspiram coadjuvados por fidalgos e peões, divertindo-se a confundi-los e manipulá-los, a usá-los. E alguns pagam-se bem, e fazem por isso. Há solistas, e golpistas.

Pertencem a confrarias, guildas e ordens religiosas, por vezes muito pouco ortodoxas, lideradas por seus orientadores, ou estão inscritos em seitas e cartéis, mais ou menos ocultos, marcados por sindicatos do crime, de gangue, de sangue e de colarinho branco, onde criminosos andrajosos e outros engomadinhos, cada um nos seus devidos postos e muito certinhos, acompanhados ou sozinhos, operam. Funcionam como agregadores de facções, distribuidores de tachos e caldeirões e organizadores de multidões. Para eles, tudo é negociável, tudo é possível e tudo é um entreposto. Não deixam de ter razão. Normalmente, entre uma panela (ou um painel) e outra, ligeiramente maior.

São exímios em reuniões à porta fechada, nos bastidores dos grandes palcos ou instalados em escritórios e salões de grandes torres e palácios abastados; dominam os estúdios e os auditórios frequentados pelos mais ilustres e reputados “notáveis”; participam nas provas de brunchs, almoçaradas, lanches e jantaradas, onde se banqueteiam e beberricam, pagando os que não comem com eles, quer nas tascas mais recônditas e inóspitas como nas casas de pasto e hospedarias mais refinadas, e os cocktails em rooftops rodopiantes são a sua paixão favorita. São sofisticados e fluentes mestres de cerimónias nos púlpitos e palanques do País das Maravilhas. Excepto Frederico, o Balbuciante (um dos muitos epítetos com que Sua Eloquência é agraciada).

O sumo-sacerdote, semi-Deus estatutariamente omnisciente, cujo entendimento vertido em palavras está acima da letra da Lei (até do espírito da mesma, quanto mais…), no topo da estrutura em pirâmide, sob o controlo do príncipe regente (que é supervisionado pelo Grande Irmão, e como tal pelo próprio Mago-Eminente), popularmente conhecido como o Fanhoso (tal o seu carisma e o afecto e o carinho por ele nutridos), dirige-se às massas, numa comunhão presencial cada vez menos frequente e mais esporádica, oficialmente por causa da Grande Praga Invisível. Ou seja, “preventivamente”, que é o mesmo que “previdentemente”, obviamente… “profilacticamente” também serve.

Mais discreto, só mesmo o próprio Frederico, o Disléxico (outro dos muitos epítetos com que agraciam o seu carisma), na sua marquise selada hermeticamente (a varanda cimeira da Croquettower, no projecto original, que ele mandou isolar). Ninguém lhe ouvia palavra pública desde a última passagem da Lua Translúcida, que só passa 3 vezes por ano e em alguns 4. Aquando do recente eclipse raro, onde um troféu de caça, um dragão de papo inchado, foi recapturado ao fim de 40 anos em Ó-das-Velas, com um aro e uma rede, nem aí Frederico, o Beijoqueiro (é muito afecto involuntário, ou dolo sem intenção, como se diz noutras paragens), aproveitou para exibir os seus dotes de pequeno demagogo e grande narciso. Para não interromper o longo Hiato de Silêncio, nem faria sentido – seria contraproducente (como sempre que se exprime por palavras, ditas ou escritas).

Enquanto as massas escutam a pregação do orador supremo, sob o olhar vago do príncipe regente no alto da pirâmide sagrada, o sombrio juiz-do-xadrez, responsável pela fiscalização da lei, da justiça e das contas do reino maravilhoso, observa solenemente a cena, lateralmente, semi-encoberto pela sombra de uma coluna, o rosto iluminado pelo fogo crepitante da pira ritualística onde ardem os sonhos da multidão, e que a encantam dia após dia. Rosto esse com um sorriso mais malandro (e cúmplice) do que o da virginal Monja Lisa.

O olhar do juiz-do-xadrez, apesar de não ser tão abrangente como o do juiz-do-gamão, (também conhecido pela voz-de-prisão), que se dedica à identificação, investigação e detenção de dissidentes, é ainda mais malandro. E a expressão ainda mais perfidamente sarcástica. A habilidade talvez seja a mesma, se for perceptível qual é. Alguma tem de ter, não se sabe bem qual. É realmente inescrutável, o juiz-do-xadrez, excepto quando lhe incide algum reflexo do fogo ou ele se assoma sob a luz das tochas, e se revela majestático em grande pose. Isso é esporádico, também, como os feitos do ponta-de-pillum* Esporare, que passa igualmente longos períodos a marinar, mas é mais contestado que o Inquisidor-Mor do Reino Estapafúrdio.

Os três, no topo do patamar cimeiro do templo piramidal, rodeando a grande pira onde ardem as aspirações da populaça, executam o ritual de encantamento, a hipnose colectiva amplificada, conseguindo inebriar os adoradores e inverter a raiva de muitos dos que protestam na adulação dos que os adoram, todos misturados em frenesim, um tumulto na base do edifício. Entoam velhos e novos mantras, jargões em lenga-lengas e charadas mágicas, entre gestos encenados e perdigotos projectados (não usam máscaras).

Naquele fogo incessante já foram queimados célebres mercenários caídos em desgraça, contratados e pagos a peso de ouro pela Nova Linhagem de Elite. Eduardo Henrique, o Lenhador. Doumbia, o Ceifador. Rosier, o Arrasador. Entre muitos outros, que vão sendo seleccionados e colocados na calha (como Ilori, o Patudo, ou Vietto, o Semi-Frio) pelo Apreende-Dor Vi-ban-Ana, Mão do Maneta (o príncipe, quando foi acusado num processo pela Autoridade Tributária, teve a sua mão cortada, mas é um assunto tabu, faz de conta que o regente é imaculado), Estas iguarias são cozinhadas e servidas doseadamente por medida, pelo Míster Ruben, o Inova-Dor, mais caro que o mais caro dos potes-pesados. Outras efemérides dignas de registo no Limbo dos Proscritos abundam, como a lenda do Prepara-Dor Físico, o prestigiado eraniano, estrela (de)cadente que mal deixou rasto, ou Bêtu Severus, veterano da causa de Godinho, o Gnomo, líder que abdicou e foi embora. Já para não falar dos Três Carecas de Ouro e o Gadelhudo de Prata, que marcaram mais do que uma geração.

Cá em baixo, ou ao longo da escadaria, os “ecoadores” e “propagadores” repetem o que é proferido lá de cima, de forma a que a palavra não se perca e a orientação suprema impere. Lá vemos Miguel Bracara, o corista, e mais acima Henrique Montadeiro, célebre por montar cabalas e tribunais populares onde incita ao apedrejamento e lapidação dos réus. Também Carlos Rosa-Cruz, o Morto-Vivo, o célebre escriba. Redizem, e redizem, e redizem, e quando não redizem é porque são forçados a dizer o contrário, tal como ditam Os Três Regentes Máximos, segundo os ditames do guia espiritual Mendes, o Guru da Abundância, de acordo com os Pergaminhos da Realidade, expedidos para todos os cantos do Universo por incansáveis estafetas montados em pégasos.

São os mesmos que apregoaram o Temível Exorcismo Purgatório, sobre o(s) Excomungado(s), e promulgaram a Última Caçada dos Cravas, logo que foram aclamados como Herdeiros Vitalícios do Legado Imperfeito. Antes da Grande Peste Invisível, os eventos da Tremenda Cisão Hereditária na sequência do Motim Cataclísmico já tinham motivado alterações profundas no status quo do reino. Agora zombam dos neófitos, mas só dos que não são acólitos da Teologia da União.  

Houve muita agitação e fricção no seio interno, com muitas alianças improváveis a revelarem-se sibilinamente eficazes no propósito de alcançar uma Nova Ordem aristocrática, assente numa hierarquia de famílias, castas e direitos exclusivos. A título de exemplo, a Gente de Bem pode agora, conforme entenda, mandar descalçar ou despir a Escumalha, que tem de afastar-se e prostrar-se no chão quando os primeiros por eles passam, para não ser a tal obrigada.

Assim é a nova ordem dos puros, a Ordem dos Neo-Exigentes, que não empobrecem de espírito, muito menos materialmente, e mantêm o rigor da observância e a perseverança da elegante demanda por todos os meios, sabendo estar, marcando com referências numéricas ou códigos de barras tudo o que possam contabilizar: o tempo, o dinheiro, as posses e os votos dos próprios esfaimados, para que entendam, os suficientemente lúcidos, que estão a ser controlados como gado, e que a sua submissão é imperativa.

Não sei como em vez de imaginar campos verdejantes e floridos onde pastam unicórnios e ninfas pu(lu)lam por entre as árvores, imagino estas cenas tétricas, estes macabros cerimoniais. Mas sempre que fecho os olhos, apelando às musas, e tento imaginar cenários idílicos onde criaturas sublimes se deleitam harmoniosamente, só vêm à mente imagens dignas de pesadelo: velhos carneiros e cabras, a balir cacofonicamente, ovelhas escanzeladas e vacas magras a pastar erva seca em campos arenosos, onde a poeira é muita e cobre os olhos, e nem os dromedários conseguem alimentar-se. Maldição!

Só talvez um guerreiro irredutível poderia, imaginariamente, em sonhos ou pesadelos, consoante a consciência de cada um, e/ou seu currículo escolar na disciplina de Religião e Moral, ou Cidadania e Desenvolvimento (conforme as Eras Educativas), cortar a cabeça de um dos Grandes Demagogos Distópicos, quem sabe duas ou mesmo as três. Infiltrando-se sub-repticiamente como um ninja rebelde, batendo-se depois valentemente como um samurai revoltado, triunfando como um insurrecto selvagem que não respeita nem lei, nem hierarquia, nem ordem, imune a vozes-de-prisão e encantamentos estatutários, tornando-se então o «credível» cavaleiro da rebelião e comandante-general da revolução dos peões. Um bárbaro, um cimério…

…Leonan!

* estilo de gladiador que usa o pillum

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