RUGIDO VERDE

Levantar e levantar de novo, até que os cordeiros se tornem Leões!

Sexta-feira, Abril 26, 2024

Neste dia… em 2018 – Inácio em entrevista: “O Pedro Barbosa fez-me a cama no Sporting”

Foto: Nuno Botelho

Augusto Inácio não tem dúvidas de que é muito mais difícil ser treinador do que jogador. Aos 63 anos, e sem papas na língua, conta como apanhou maus e bons balneários no seu percurso, revela como Bruno de Carvalho o convenceu a apoiá-lo e afirma que, se tivesse feito as pazes mais cedo com Jorge Jesus, se calhar ainda hoje estava no Sporting.

Quando arrumou as botas já sabia que queria ser treinador?
Já sabia o que queria, mas não sabia por onde começar. Queria pelo menos experimentar o que é isto de ser treinador. Tive oportunidade de ir para clubes da II Liga e esperei. Até que um dia à noite liga-me o Reinaldo Teles. “Queres vir ter com a gente que estou com o presidente? Queremos falar contigo. Vens aqui comer um pica no chão”. Fui ter com eles a um restaurante ao pé da Praça Velasquez. Estava o Pinto da Costa, o Reinaldo Teles e o dr. Vieira de Carvalho, presidente da Câmara da Maia. Perguntaram-me se queria petiscar, disse que não, mas que queria um whisky com duas pedras de gelo. E virei-me para o Reinaldo: “Dá-me aí um cigarro se faz favor”. O Pinto da Costa : “Whisky, cigarro?!”. “É, presidente, o senhor Pedroto dizia-me ‘um dia que fores treinador, se não beberes uns whiskies, se não fumares uns cigarros e não perderes umas noites nunca vais ser treinador’. Já estou a começar, com o whisky e o cigarro, depois as noites vamos ver”. Eles começaram todos a rir.

Mas afinal foi lá para quê?
O Dr. Vieira de Carvalho queria que eu fosse treinar o Maia, que tinha subido à II divisão. Mas o Pinto da Costa queria que eu ficasse no FC Porto a treinar os juniores. A decisão era minha. O Vieira de Carvalho explicou-me qual era o projeto e ofereceu-me quatro mil euros de salário. E o Reinaldo disse-me mais tarde que ele ia aos cinco. Mas eu quis ficar nos juniores do FC Porto, porque preferia começar por baixo. E quando fui para assinar contrato pelo FC Porto, dos cinco mil euros que podia ganhar no Maia, fui ganhar mil euros no FC Porto (risos).

Já tinha o curso de treinador?
Já, tinha tirado com 30 anos. Preparei-me antes. Eu já com 28/29 anos perguntava ao Bitaites porque fazíamos este exercício e aquele e apontava, escrevia tudo. Foi assim que fui ganhando conhecimento. Depois, pensava: “Se fosses treinador o que dizias ao intervalo aos jogadores?”. E fazia a minha análise. O treinador falava, umas vezes coincidia com o que tinha pensado, outras vezes não; ou seja, já fazia uma avaliação das coisas.

Augusto Inácio, em baixo ao centro, foi um dos adjuntos de Bobby Robson. D.R.

Esteve dois anos nos juniores do FC Porto.
Sim, eles queriam que eu continuasse, mas eu é que disse chega.

Tinha outras propostas?
Não, entendi que dois anos nos juniores chegava porque depois ficava com o ADN só de treinador de miúdos, de juniores. E eu não queria. Depois tive o convite para o Rio Ave, que não tinha dinheiro, pediu uns jogadores emprestados ao FC Porto e, dos miúdos que eram juniores e subiram a seniores, levei nove.

Foi muito diferente passar a treinar seniores?
Foi, foi. Para já, a maneira como falamos tem de ser diferente. Depois apanhamos de vez em quando aquelas cobras. Eu apanhei o Carlos Brito, que foi treinador; o Eusébio, que também foi treinador; o Joel, que foi guarda-redes… Além de ter de falar de outra forma, a exigência tem de ser diferente também. Temos de partir com um objetivo de época, de clube. O que é que queremos? É aí que às vezes os dirigentes se perdem. Começam por dizer que só não querem descer de divisão, mas se a equipa ganha cinco ou seis jogos seguidos, já querem a Europa; depois, se perde dois ou três jogos, és despedido porque a equipa está a perder. Por outro lado, 25 jogadores são 25 mundos diferentes. O jogador é muito egoísta, só pensa nele. Sempre aprendi que se não houver disciplina no balneário não há possibilidade de haver bons resultados. Tem que haver disciplina no balneário. E tem de partir de nós próprios. Quando havia um adjunto que chegava um bocadinho atrasado, eu multava esse adjunto. Uma vez multei-me a mim mesmo, no Zamalek, porque o meu alarme não tocou e cheguei cinco minutos atrasado à palestra. Falhei, não estou com desculpas, não interessa se levei a mãe ao hospital, como eles dizem sempre, ou se o filho adoeceu durante a noite. Se foi porque o despertador não tocou, assumo e pago. Antes de exigir aos outros exijo primeiro a mim mesmo. É o primeiro princípio.

É mais difícil ser treinador do que jogador?
De longe. É preciso ter sorte com as pessoas que estão à nossa volta, toda a gente, departamento médico, toda a estrutura. É importante que estejam com o mesmo espírito que tu. No Sporting, por exemplo, o médico que tive lá foi um traidor. O Dr. Fernando Ferreira foi um traidor. Escondia-me lesões dos jogadores, não me contava. Chamo a isso um traidor. Por isso é que digo que é preciso ter sorte com as pessoas que estão à nossa volta para que nos ajudem e para que as coisas andem e avancem. Quando tens dirigentes em que multas o jogador e o dirigente vai por trás e diz “se marcares um golo eu tiro-te a multa”… Apanha-se disso também. Mas as coisas são mais personalizadas agora, há SADs, aquilo já é negócio mesmo, há que saber gerir as coisas porque é um ativo que pode dar milhões.

Um balneário pode despedir um treinador?
Pode. Mas se não tiver apoios de outros, fora do balneário, depender só deles próprios não chega. Porque há sempre uns que combatem os outros. O ideal será em 25, se houver três ou quatro ranhosos, os outros 21 abafam aquilo tudo. Agora, se for meio por meio, as coisas já são mais complicadas. Mas há uma coisa que deixa sempre o jogador em sentido: é quando não nos escondemos e falamos a verdade, para bem e para o mal. Sermos diretos. Nós muitas vezes temos que dar mais moral é àqueles que não jogam, não é àqueles que jogam, porque eu só conheço o jogador quando ele é titular e deixa de o ser. Aí conheço o homem, aí conheço o bicho.

Augusto Inácio com a mulher e o filho mais novo. D.R.

Foi adjunto do FC Porto durante quatro anos. Adjunto de quem?
Carlos Alberto Silva, Ivic e Bobby Robson.

Dos três com quem aprendeu mais?
No discurso Carlos Alberto Silva. O Ivic estava sempre com a caneta a fazer táticas, devia ter milhões e milhões de táticas. Primeira ideia dele era esta: não defender, não sofrer golos, depois tentar marcar. Uma pessoa bem-disposta. Apanhei-o enquanto jogador, ele foi meu treinador, e depois fui adjunto dele. Como pessoa, cinco estrelas, mas tinha uma obsessão pela tática. Uma vez fomos jogar ao Feyenoord, empatámos 0-0, fizémos um remate à baliza em 90 minutos e jogámos com dois autocarros, três táxis à frente e, se pudesse blindar a baliza, fazia-o. Passámos. Tínhamos ganho 1-0 nas Antas e no fim disse ele assim: “Achas que jogámos muito à defesa?” (risos). O Bobby Robson…divertido, um grande animador, um homem que via o futebol de uma forma diferente. Para fazer as substituições era uma confusão.

Então?
Era só a 10 ou cinco minutos do fim. Uma mudança de tática, ou na 1ª parte ou no início da 2ª parte, não era com ele. Agora, os treinos dele eram alegres, os jogadores gostavam muito. A gente às vezes dizia: “Que palhaço”. Mas com carinho. Por exemplo, cruzamentos. Ele gostava dos cruzamos tensos e às vezes os cruzamentos iam mais devagar e em arco, e nessa altura ele mandava-se para o chão, punha-se de lado com um braço esticado e dizia: “Neve, neve, está a nevar!” (risos) A neve era a bola, que vinha muito lenta.

Era gozão.
Era… e agarrado ao dinheiro. Uma vez fomos a Penafiel, aos fatos, convidaram-nos para ir a uma fábrica e ele para mim: “Inácio como é que é isto?”. “Ó mister, escolha”. “E é muito caro?”. “Não, não é muito caro, eles vão dar isto”. “Dão?!”. Ele escolhia dois ou três casacos e eu dizia-lhe: “Ó mister, escolha mais”. E ele: “Não, porque depois tem que se pagar” (risos). Não queria pagar nada (risos).

Saiu do FC Porto para Felgueiras. Porquê?
Eu tinha mais um ano de adjunto do FC Porto, mas queria voar sozinho. Entretanto, não estava à espera que o FC Porto trocasse de treinador naquela altura. É quando o Oliveira entra. O Reinaldo falou comigo e disse-me que o Felgueiras me queria. Eu já tinha ouvido aqueles zunzuns umas semanas antes e mandei uns números para o ar, para chegar aos ouvidos de Felgueiras, como quem diz, sou muito caro, não vale a pena. Mas eles quiseram-me na mesma. Faltavam 23 dias para começar o campeonato e só tínhamos cinco jogadores inscritos. Cinco. E a ideia era fazer o melhor campeonato possível, mas dentro do possível, também, subir de divisão. Começámos, fomos, fomos, fomos e chegámos a dezembro e uma equipa grega queria que eu fosse para lá. Falei com o Sidónio, disse-lhe que era uma boa oportunidade para mim. Eles não me deixaram sair, até que em fevereiro veio o Marítimo e eu expus o caso outra vez. E o Sidónio disse-me: “Como dirigente do Felgueiras não te deixo sair, mas com cidadão é uma boa oportunidade para ti”. O Marítimo lutava para não descer de divisão e nós a dois pontos da subida. E fui para o Marítimo. E conseguimos salvar o Marítimo de descer de divisão e no outro ano classificámos o Marítimo para a Taça UEFA.

Augusto Inácio confessa que adorou treinar o V. Guimarães. Sérgio Granadeiro

Para a Madeira foi sozinho ou com a família?
A família ia lá ter porque os miúdos estavam na escola. Quando os miúdos estão na escola e já estão numa idade em que se põe em causa a sua estabilidade… As viagens eram baratas e eles iam ter comigo muitas vezes.

Nunca reclamaram de o pai estar longe?
Não. Para se ter um bom nível de vida alguém tem que se sacrificar. Não podemos ter o céu e a terra, isso era o ideal dos ideais. Treinador de futebol é como digo: casa fixa num sitio e depois mala pronta para irmos para qualquer parte do mundo. Só ultimamente, quando fui para o Irão, para Angola ou quando estive na Roménia é que tive praticamente sempre a minha mulher e o meu filho mais novo comigo. O meu filho Paulinho já sabia falar farsi no Irão – esteve lá ano e meio. É uma estabilidade muito maior quando estamos com a família por perto. A minha mulher cozinhava para nós e para os adjuntos, por exemplo. A vida que eu fazia lá praticamente era a vida que fazia aqui.

Mas na altura em que foi para o Marítimo foi sozinho. Fica a viver onde?
Fiquei um ano no Monumental Lido e depois, como quiseram fazer mais três anos de contrato, comprei um apartamento lá, que já vendi, claro.

Depois faz uma época em Chaves.
Não é uma época. Eu saí do Marítimo e o Chaves estava a lutar para não descer de divisão e contratou-me por cinco meses. E foi uma pena porque estivemos quase, quase a salvar o Chaves, mas faltavam ainda três ou quatro jogos e entendi que o Chaves devia contratar outro treinador, porque eu não ia continuar, para conhecer o plantel que tinha e depois fazer as aquisições que quisesse. Quis que o próximo treinador tivesse tempo de conhecer os jogadores que tinha.

Não ia ficar no Chaves porquê, tinha outras propostas?
Porque não era um projeto que eu quisesse continuar, só me interessava continuar se o Chaves subisse.

Inácio esteve três épocas e meia em Guimarães.
Rui Duarte Silva

Já sabia que ia para o Sporting?
Não, não. Eu comecei a época sem trabalhar. Eu só fui para o Sporting em setembro.

Quem é que o contatou?
Foi a primeira vez na minha carreira que não comecei uma temporada. Aquilo deu-me cabo da cabeça. Entretanto convidaram-me para fazer uns comentários para a Antena 1 e resolvi experimentar. Estava a fazer um FC Porto-E. Amadora, nas Antas, e recebi uma chamada do Dr. Agostinho Abade. Combinámos encontrar-nos no Meridian, no Porto, e foi ele que disse que o Roquette queria falar comigo, em Lisboa. No outro dia fui para uma vivenda no Restelo e estivemos a falar, mas curiosamente não era para ser bem treinador.

Então?
Era para fazer a ligação entre o futebol e a administração e também fazer a parte de scouting, porque o Sporting tinha tido muitos barretes: os Kmets e aqueles argentinos todos que era cada barrete! Ou seja, fazer um gabinete de prospeção em que 90% fosse para dar certo.

Estava disponível para esse novo desafio?
Estava. Embora fosse novo como treinador, era o meu regresso ao Sporting. E aí já não interessa se sou treinador ou não – estava a servir o Sporting. Entretanto disseram-me que ia tomar conta da equipa e que depois falávamos. Acho que deram um bocado de espaço e tempo para o “deixa cá ver como é este tipo a treinador”. Se não desse certo partiam para outra. Só que aconteceu uma coisa em que acho que marquei pontos.

O quê?
Quando vão para me apresentar aos jogadores, num gabinete que antecede os balneários, houve um dirigente do Sporting que disse: “Ó mister, não ponha o Vidigal a jogar que aqueles pés são uns tijolos!”. E começaram todos a rir com a piada. E eu fiquei com uma cara muito feia. O Roquette percebeu e disse: “Eles estão a brincar”. E eu: “Eu não gosto dessas brincadeiras. Se é para apresentar um treinador assim, apresente esse diretor como treinador porque acho que ficam já bem servidos. Comigo não contam para isto”. Ficou um gelo naquele gabinete. Mas eu tinha que entrar assim, mesmo de pé em riste. Foi a apresentação e a partir daí as coisas avançaram.

Augusto Inácio regressa ao Sporting como treinador e sagra-se campeão nacional, em 2000. Getty Images

Alguma vez lhe passou pela cabeça que ia ser campeão ao fim de 18 anos?
Há coisas… Isto não é premonição, mas eu disse uma coisa na estreia do Luís Duque quando entra a nova administração, no jogo Sporting-Campomaiorense, e depois, num almoço na Quinta da Marinha em que o Duque despediu o Carlos Janela na hora e disse que queria falar comigo… Não havia salas disponíveis, fomos para o meu quarto e ele disse que eu era o treinador do Sporting e só queria que levasse a equipa à Taça UEFA, que já era um grande campeonato que eu fazia. “Sim senhor, vamos conseguir isso e muito mais se Deus quiser”. Vamos para o jogo, o treinador do Campomaiorense era o Carlos Manuel, ao intervalo, se o Campomaiorense não estava a dar 3-0 ao Sporting, era porque estava a ser uma grande injustiça; o Sporting não jogou nada, zero, uma merda. E o Campomaiorense muito bem, grande jogo. Na 2ª parte, o Campomaiorense continua a falhar golos e a sete minutos do fim, a 25 metros da baliza, o Vidigal lembrou-se e rematou. Golo. O Sporting ganha 1-0. E é nesse dia que digo ao Duque: “Quem ganha um jogo destes com esta cagueira toda está sujeito a ser campeão”. Mais à frente o Duque diz-me: “Ó mister, 2º lugar é como se fossemos campeões”. E eu respondi: “Quem pensa no 2º nunca chega a 1º”.

E o Sporting é campeão.
Que era o sonho do meu pai. Que um dia eu regressasse ao Sporting e fôssemos campeões. É por isso que quando olhei para o céu, disse: “Pai, este título também é teu”. Quando recebi a faixa de campeão a primeira coisa que fiz foi ir ao cemitério, sozinho. Estendi a faixa na campa dele e disse: “Eu sei que amanhã a faixa já não está aqui porque vão roubá-la mas é só para dizer que tens a tua faixa de campeão”.

Augusto Inácio, treinador do Sporting, erguido pelos seus jogadores, após a conquista do campeonato nacional em 2000. Jose Manuel Ribeiro

Onde estava quando o seu pai faleceu?
Sei que estava num casamento no norte quando ele foi para o hospital. O meu pai levou cinco bypass. E entre várias recaídas houve uma em que eu estava num casamento e ligaram-me a dizer que ele não estava muito bem e que tinha ido para o hospital. Não sei onde é que tinha o casaco, nem o procurei, sei que estava em camisa, peguei no carro e só no caminho é que disse à minha mulher que ia para Lisboa. Já ia vidrado. Cheguei ao Hospital Santa Maria e disseram-me que àquela hora não podia vê-lo. E eu, quando sou muito calmo a falar, é quando estou prestes a explodir. E disse: “Ouça, vim agora do Porto, não sei se amanhã o meu pai está vivo, eu quero ver o meu pai, você quer fazer isto a bem ou a mal?”. Ela percebeu os meus olhos e deixou-me vê-lo nos cuidados intensivos. Ele já não me viu. Fiquei ali cinco minutos a falar com ele, a dizer coisas. “Eu sei que quando fores lá para cima vais olhar por mim”. Dei-lhe um beijo e perguntei ao médico: “O meu pai passa desta noite?”. “Dificilmente”. Às 9h45 do dia seguinte tocou o telefone. Tratei do funeral rapidamente e eu, que tenho a mania que sou forte, quando chegou ao momento H, deixei de o ser. Quase que arranquei o meu pai lá de dentro, veio mesmo o pescoço atrás de mim… mas tinha que ser. De vez em quando falo com ele sozinho, sem ninguém ouvir. Ele não sabia ler nem escrever, mas foi um grande homem, lutou pela vida e pelo menos deu-nos uma boa educação e um bom nível de vida. Mas teve um azar no 25 de abril.

Qual azar?
É que a independência foi muito bonita mas para ele foi muito feia. Porque ele era um pequeno construtor, tinha pedido dinheiro ao banco e enterrado as suas economias todas num prédio no Restelo que já tinha vendido à companhia de seguros Império. Ficava ele bem na vida e nós também com um bom rendimento durante 22 anos. Ele estava todo contente porque era a galinha dos ovos de ouro. No dia em que estava para fazer a escritura dá-se o 25 de abril e o homem ficou entalado – perdeu tudo. Tudo menos a casa, onde hoje a minha mãe ainda vive. Desde 1975 que dou dinheiro aos meus pais e agora dou à minha mãe. Todos os meses, não falhei um tostão. Dos mil euros, eu dava 400 aos meus pais e ficava com 600 para mim. Hoje [dia da entrevista], fui lá dar a mensalidade, em dinheiro. Nunca falhei em nada com eles. A minha filosofia é esta: as pessoas só precisam de ser bem tratadas em vida. Lembro-me de uma história da minha avó, eu tinha uns nove anos, era puto, e a minha avó com as filhas, eram peixeiras, e aquilo às vezes havia insultos e deixavam-se de falar durante um mês, dois meses, às vezes um ano – e eu sabia que a minha avó não falava com duas das filhas há muitos anos. E, quando morreu, essas duas filhas fartaram-se de chorar. Aquilo ficou-me na cabeça. Era eu para o meu pai: “Que falsidade, então não falam com a avó há uma data de anos e agora vêm aqui chorar minha rica mãe? Que falsidade”. Eu tenho de tratar bem a minha mãe é em vida. Quando eu morrer eu quero dizer para mim: “Augusto, tu fizeste o que podias ter feito”. Não quero ficar a pensar que podia ter feito mais alguma coisa. Realmente, há uma coisa que podia fazer mais: visitá-la mais vezes. Mas ligo-lhe todos os dias.

Ainda hoje?
Todos os dias. Estou na Roménia, na China ou no Irão, todos os dias ligo à minha mãe. Antes das oito da noite, que ela deita-se às oito.

Augusto Inácio e a mulher Sana Inácio.
D.R.

Voltemos ao Sporting. Saiu do Sporting campeão, voltou como treinador e torna-se campeão novamente. É algo de muito especial.
Então não é? O envolvimento das pessoas na rua comigo era uma coisa impressionante. Eu às vezes ia no carro, depois de as pessoas falarem comigo, e as lágrimas caíam-me pela cara. Porque as pessoas diziam: “Ó sr. Inácio por favor leve a gente a ser campeão!”. E eu pensava: “Será que sou impotente para dar esta alegria às pessoas? Eu não posso levar-me pelas emoções, tens de treinar bem, tens de estar concentrado”. Mas depois daquele jogo com o Benfica… foi a semana em que me caiu mais cabelo ou fiquei com mais cabelos brancos ou em que dormi menos. Foi uma semana de tortura para mim, mas ao mesmo tempo expectante que a coisa estava para acontecer.

Mas acaba por não ficar no Sporting. Porquê?
É uma história muito grande.

Tente encurtá-la.
Tudo começa quando estou em Punta Cana a passar férias. E a minha filha ligou-me para lá a dizer que há grande problemas no Sporting com guerras entre Duques e Roquettes. E diz-me que estou no meio daquele fogo. “Estou no meio do fogo porquê? Estou aqui a apanhar solinho, fomos campeões, é uma guerra interna, deles, não é minha”. E ela: “Ó pai, mas olha que eles estão a falar muito no teu nome”. Fiz as férias até ao fim, não vim mais cedo. Mas claro que regressei preocupado. Curiosamente, fui a Lisboa antes de partir para o Porto, onde tinha casa e vivia a família. Estava eu na fila de embarque quando recebo uma chamada do Duque. O Carlos Freitas foi ter comigo ao aeroporto, não demorou nem 10 minutos. E não me quis dizer o que se passava. Quando estávamos a passar pelo “Magriço”, a dar a volta para entrarmos no estádio, ele ligou para o Duque. Quando nos aproximamos da porta 8A, era só povo. O Duque desceu e começou tudo: “Duque, Duque”. Saí eu do carro – parecia um chocolate, vinha moreninho, moreninho – e o pessoal todo: “Inácio, Inácio. Vocês não podem sair”. E eu a tentar perceber o que se passava, a tentar apanhar o ambiente.

E depois?
Fomos para a SAD, estavam os administradores todos na sala e o Duque disse-me: “Estamos em guerra com o Roquette porque queremos investir na equipa de futebol e ele não quer dar dinheiro e acho que se o Mister tomar uma posição ele vai dar o dinheiro”. Como quem diz, você diz que está com o Duque, entala o Roquette e ele ou vai embora ou dá a pasta. Olhei para eles todos e disse: “Há uma coisa que vos posso dizer, eu não posso dividir o Sporting. O Sporting é campeão e foram todos os sportinguistas, não foram os do Duque ou os do Roquette, foi o Sporting. Portanto vocês devem tentar entender-se até à última e só se não houver mais hipótese nenhuma é que eu dou a minha opinião, agora não”. O Duque não gostou. E depois foi quando se meteu o Pedro Barbosa e essas coisas todas… O Pedro Barbosa fez-me a cama. Eu sei que fez. Mais tarde é que soube. E pela forma como ele agiu juntamente com o Duque percebi, não posso estar a garantir, mas acho que à custa daquilo o Pedro Barbosa ganhou mais dois anos de contrato. Acho. É uma dedução apenas. O Pedro Barbosa fez tudo para a gente perder o jogo na Luz, quando foi o 3-0. Fez tudo. Fez tudo para vir para a rua e o (Jorge) Coroado mais tarde veio contar-me que ele fez tudo para vir para a rua. O Coroado estava a fugir dele, ele é que estava atrás do árbitro, já tinha um amarelo. Nós a perder 1-0 e em cima do Benfica para 1-1 e fiquei sem ele? Depois, no contra-ataque, o João Tomás, 2-0, 3-0. Depois do jogo, o Pedro Barbosa estava lá em cima no balneário e quando íamos entrar ele estava a bater as palmas e a dizer: “Malta, eu assumo”. Subi as escadas, fui direito a ele e chamei-lhe tudo. “Meu grande filho da puta mas tu assumes o quê? Vais dizer para os jornais que foste tu o culpado, o único culpado da derrota? És tu que vais dizer isso ou dizes isso aqui para inglês ver? És um capitão de merda, não vales uma merda”. O Duque ficou do lado dele. Pronto, está tudo feito. Depois há a história rocambolesca do é despedido, depois volta…já é outra história.

Augusto Inácio, à esquerda, com Luís Duque ao lado.
Adam Davy – EMPICS

Ficou muito magoado?
Não, porque acho que no fundo, no fundo quem foi o maior camelo fui eu. Porque depois daquelas confusões todas e de não ter dado o meu voto às contratações de jogadores. # quando vem o Bruno Caires, que não jogava há um ano no Celta de Vigo e vou ter com o Duque e digo-lhe que ele não está em condições de jogar no Sporting, ele responde-me: “Depois em dezembro faz a triagem e manda os que quiser embora”. Nessa altura devia ter vindo embora.

Não veio porquê?
Eu gostava tanto de estar no Sporting, o Sporting era o Sporting, que fiquei lá e fui engolido. Se tenho dado o passo e se tenho dito que naquelas condições não trabalhava mais, era o melhor que tinha feito, porque estava num momento alto e ninguém ia admitir que o Inácio saísse do Sporting, como muitos não admitiram quando eu saí. Mas a força já não era tanta, era bem menor. Por isso, acho que esse foi o grande erro da minha carreira. Mas lá está, por amor ao Sporting.

Seguem-se três épocas e meia no Vitória de Guimarães.
Guimarães…Eu vou dizer-lhe uma coisa, os sportinguistas podem não gostar disto, nem se calhar os jogadores da altura, mas o melhor grupo que eu treinei como grupo, como pessoas, como profissionais, o melhor, foi aquela equipa do V.Guimarães quando o estádio estava em obras por causa do Euro e fomos jogar a Felgueiras. Foi o melhor grupo que treinei. Ficámos em 4º lugar, salvo erro. Naquela altura não dava para irmos às competições europeias. No outro ano a seguir o 5º lugar já deu. Jogávamos muito à bola. Era o Mourinho no Porto e éramos nós do V. Guimarães. Jogámos muito, muito à bola.

O que é que tinha de tão especial?
Aquilo encaixou tudo. O ambiente, o dia a dia, a tática. Eu não fazia a tática em relação ao adversário, eu fazia a minha tática. Quando saía de casa pensava “vou ter com os meus meninos”, todo contente. Eu chegava e só ouvia: “Vem aí o homem”. E ficavam todos em sentido. Mas a falar era uma descontração, ouvia todos, falávamos todos. Adorei, adorei. E depois Guimarães, aquilo é uma cidade…quando não corre bem…quando lá cheguei estavam a lutar para não descer de divisão e livrámo-nos na última jornada. O presidente era o Pimenta Machado. Quando cheguei disse para os meus adjuntos: “Em que grande Vietnam nós viemos meter”.

Porquê?
O grupo era uma grande merda, não queriam trabalhar e eu pensava: “Como é que nos safamos com este gabirus todos aqui?” Lá fomos, lá fomos, na última jornada salvamo-nos e, de 24 jogadores, 19 foram embora. Só ficaram cinco. Mas foi um trabalho que deu um gozo do caraças. No outro ano ficámos em 8º ou 9º e no ano a seguir é que ficámos no 4º lugar. Trabalho de base, que foi nosso, nosso. Foi muito bom.

O Al Ahli do Qatar foi a primeira equipa que Augusto Inácio treinou fora de Portugal.
Amr Dalsh

Uma época no Belenenses.
Foi para tentar salvar e salvamos. Mas lá está a tal coisa que dizia há pouco, os dirigentes querem uma coisa e depois já querem outra e outra. E chegámos ao fim, tinha mais um ano de contrato, mas disse: “É melhor ficarmos por aqui porque ficamos todos bem na fotografia”. E disse ao Sequeira Nunes, vocês não desceram este ano de divisão mas da maneira que isto está… vocês ficam no sofá, não querem levantar a peida do sofá e não é este ano mas nos próximos dois, três anos vão descer de divisão. Não desceram no outro ano por causa do caso Mateus, mas desceram no ano a seguir. Eu sabia para onde aquilo ia. Aquilo estava tão enraizado, tão enraizado que eu queria fazer mudanças e as próprias pessoas ofereciam resistência. Diziam que eu era bruto. Qual bruto? Eu tinha é que ser duro porque na boa não iam lá.

Nesta altura já está separado?
Sim, separei-me em 2001/02, quando estava no V. Guimarães. Depois conheço a minha atual mulher, Sana Inácio.

O que fazia ela?
Era dona de uma imobiliária em Guimarães. Já tinha dois filhos, um casal. Casamos há seis, sete anos. Temos um filho, o Paulinho, que nasce ainda em Guimarães, em 2004. Foi tiro e queda (risos).

Depois do Belenenses começa a aventura fora de portas. Primeiro o Qatar. Como surge?
Veio um empresário líbio ter comigo com uma proposta, mas depois de eu lá estar tentaram que viesse outro treinador (risos). Porque aquilo é assim. Eles recebem a comissão logo à cabeça e não vão estar um ano à espera, então convém que esse treinador saia para vir outro para receber nova comissão (risos). Se levar dois, três, quatro treinadores, são duas, três, quatro comissões É uma maravilha não é (risos)? O próprio que mete é o primeiro a tirar. Sabe quem é que foi meu jogador lá?

Quem?
O Pep Guardiola. E o Dominguez também. Pep Guardiola, bom gajo, bom tipo, boa pessoa, era o segundo ano dele lá. No primeiro ano tinha levado a mulher, no segundo já estava sozinho. Perguntei-lhe se ele se dava bem ali, sozinho. E ele: “Ó mister, passo o dia a jogar golfe, isto é uma maravilha”. Só podíamos treinar à noite por causa das temperaturas muito elevadas. Ganhava cinco milhões por ano. Aquilo era uma maravilha (risos).

Augusto Inácio com Bruno de Carvalho.
Nuno Fox

Quando vai para o Qatar vai com a família?
Fui sozinho. Estive lá seis, sete meses.

Gostou?
Eu sou de fácil adaptação. Se for para a Sibéria também me dou bem. Palavra de honra. Se as pessoas conhecessem Vaslui (Roménia) perguntavam: “Mas isto é uma terra? Isto não está fora do planeta?”. É uma coisa impressionante. É uma terra a mais de 300 km de Bucareste, essa sim uma cidade do caraças. Agora, Vaslui? Mas eu adaptei-me. Quando fui para o Irão a mulher foi comigo, para Angola também, Grecia, e quando fui para a Romênia ia lá ter. Não estava sempre comigo porque os miúdos estavam na Faculdade.

De todos os países por onde passou qual foi aquele que mais gostou, a que mais facilmente se adaptou?
Gostei do Qatar.

Onde é que viveu a situação mais caricata?
Isso foi no Vaslui. Eu e o Joaquim Milheiro, que é o coordenador das seleções jovens, mais as mulheres, fomos num dia de folga a Iasi, que é onde fica o aeroporto. Almoçamos, fomos às compras e quando viemos vi uma placa a dizer Vaslui. Parei o carro e disse mas eu não vim por aqui. Perguntei a numa loja se aquela estrada ia para Vaslui, disseram que sim. Bem andei uma hora e meia num caminho das cabras, o carro sempre aos balanços. Nem um carro da tropa conseguia passar ali. E nós aos balanços, até que lá chegamos e quando comentamos que tínhamos vindo por ali… “Foram por ali? Grandes heróis! Vocês mereciam uma medalha!”. É uma estrada inacreditável e senti medo, pavor mesmo, porque já estava a escurecer e só pensava “nós vamos ficar aqui”. Não se via nada, só de vez em quando aparecia uma casa. Nunca vi uma estrada daquelas. Ficámos amassados durante uma semana (risos).

Augusto Inácio com a mulher no Egipto.
D.R.

E no Qatar?
Uma vez fomos jogar a Omã, tínhamos ganho 3-0 em casa, fomos lá fazer a 2ª mão. Quando chegámos ao estádio, o relvado estava todo careca, no balneário só havia cadeiras de plástico, mais nada. Ganhámos esse jogo por 2-1 e o golo deles foi marcado sem exagero com mais de 10 metros em fora de jogo. No final fui ter com o árbitro e disse-lhe que era inadmissível. E ele: “É para eles também ficaram contentes, marcaram um golo”. Ah é assim que isto funciona? (risos). Quando regressámos, passámos pelo aeroporto e apesar de lá não se poder beber álcool o cartão de estrangeiro dá para ir a umas lojas. Podemos comprar álcool, mas não podemos levar para lá. Eu vi aquelas garrafas de whisky e vodka… Cheguei-me ao pé do capitão e perguntei se não podíamos levar uma garrafinha. “Mister, não!”, e fazia-me o sinal do xadrez com as mãos como quem diz: vais preso. O que é que eu fiz? Comprei duas garrafas de whisky e meti nos equipamentos do Al Ahli. Estávamos todos a sair, eu ia a passar e o meu capitão estava a falar com o gajo que estava a controlar as bagagens e às tantas ele parou o tapete rolante onde estava o equipamento do clube. Começou a chamar o meu capitão e eu a dizer-lhe por gestos: “Duas garrafas de whisky”. Ele deitou as mãos à cabeça. E eu disse-lhe que as garrafas eram dele. E ele: “Não, não, não” (risos). E eu: “Fala com ele, fala com ele”, a apontar para o amigo dele. Ele lá disse qualquer coisa ao tipo que me atirou uns olhos… Mas fez sinal e mandou seguir. Aquilo passou. No outro dia era o meu capitão para mim: “Coach, not possible, two bottles of whisky, it’s crazy!”. Eu disse-lhe: “Fizeste-me um favor. No próximo jogo vais jogar” (risos). Ele era capitão, jogava sempre não é? (risos).

Augusto Inácio num jogo da liga do Egipto, cumprimenta o treinador do EL Masry, Hossam Hassan.
D.R.

E na Grécia?
O Ionokos… O que era aquilo? O pai do presidente foi o fundador do clube e pediu para ele com 27 anos e o irmão com 28, seguirem com o projeto dele. O mais velho era o homem das finanças, e o outro era o que geria aquilo tudo. Só que o negócio dele era importação de bebidas e ele não podia entrar na ilha de Corfu porque a mafia fazia-lhe a folha. Ele usava duas pistolas e tinha uns 50 seguranças à volta dele, mas era um gajo porreiro. Falou comigo para ir para lá. Chegámos a acordo. Entretanto a promessa é para contratarmos nove jogadores no mercado de janeiro. Fiz o primeiro jogo e nesse dia a federação retirou três pontos ao Ionikos porque ele tinha dado duas peras no árbitro – e no aeroporto (risos). Depois, disse-me que já não ia contratar nove jogadores, que tinha de resolver uma cena primeiro. Fomos ganhando, empatando, até que houve um jogo em casa e o sacana do fiscal de linha era um grande ladrão ao ponto dos adeptos saltarem para dentro do campo e apertarem-lhe o pescoço. Houve uma grande confusão, vi pistolas no ar, nos corredores das cabines. Eu pensei: “Isto é de gangsters mesmo”. E tiraram-nos mais dois pontos (risos). O homem chamou-me e disse-me: “Tu não mereces, és um grande profissional, não mereces isto. Eu não vou insistir mais porque vamos descer de divisão, não temos hipótese nenhuma, eles estão a perseguir-me e vão-nos ‘matar’. Como é que queres fazer as coisas?”. Eu disse-lhe: “Não te preocupes comigo, resolve as tuas coisas, pagas só até ao final do mês e não quero mais nada”. Ganhei um amigo para a vida. Ele disse-me: “Tu não conheces o grego, tu vais ficar para sempre no coração e vou ficar sempre em dívida para contigo. Um dia que precisares, fala comigo”. Nunca mais falei com ele. Quando abri a página no FB, quando estava no Sporting,em três dias cheguei às 5000 pessoas possíveis, e uma delas era o presidente do Ionikos. Ele percebeu que era eu e convidou-me para ir para a ilha dele, que me dava casa e podia ficar lá a viver sem pagar nada: “Tens barco, tens tudo (risos)”. O grego não se esquece (risos).

E o ano e meio no Irão?
Aquilo era uma empresa de aço, que fazia muito negócio com os alemães. Quando me pagavam ao fim do mês iam àqueles cofres de ferro grandes, e quando abriam estava cheio de notas de dólares. Eles iam lá tirar um bocadinho (risos) e davam-me para contar para ver se estava certo. Abriram lá uma piscina que levava mil pessoas e de manhã era para as mulheres e à tarde para os homens.

A sua mulher sofreu muito no Irão?
Não, foi giro porque ela tinha que se vestir parecida com elas. Tinha que ter o cabelo metido por dentro do lenço, o vestido tinha que ser até aos pés, nem o tornozelo se podia ver, e as mangas tinham de tapar os pulsos. Há uma altura em que íamos na rua e parou um carro da polícia; aproximaram-se e começaram a mandar vir connosco. Eles reconheceram, porque ouvi “coach”, e começaram a apontar para a minha mulher. Depois, a polícia apontou para o cabelo dela e disse que ela tinha um bocadinho de cabelo de fora, que tinha de meter para dentro do lenço. Se fosse uma delas, ia presa. Mas tem piada que em Teerão não é assim. Elas vestem-se muito bem e sabem as marcas todas, no lado rico, claro.

Inácio e a mulher em cima de um camelo, no Egipto.
D.R.

A equipa de adjuntos é sempre a mesma?
Era. Andei muito tempo com um adjunto, mas é melhor não falar no caso… Havia um que me pediu ajuda porque há oito meses que não pagava ao banco a mensalidade da casa e eu dei-lhe a oportunidade de estar comigo no Belenenses e depois fui para o Irão e eles não tinham verba para ele, mas consegui arranjar maneira de ele ir. O homem só faltou beijar-me os pés. Estava a salvar-lhe a vida. Depois de lá estar com ele e outro adjunto, que tive durante 14 anos, fizeram-me os dois a cama, atraiçoaram-me e ficaram lá eles – e eu fui embora. Nunca mais se ouviu falar deles. Deus é grande, encarrega-se. Deixou-me triste, porque se não fosse eu, onde estava esse adjunto que andou comigo 14 anos? Mas por um punhado de dólares, na promessa de que ia ganhar isto e aquilo, não se importou de espetar as facas todas. Por isso, já tenho uma couraça. Posso dizer que houve dois adjuntos que adorei muito, Vitor Bruno, atual adjunto do Sérgio Conceição, é um homem espetacular, honesto, sério e não lhe dou mais quatro, cinco anos para ser treinador principal. Tem capacidade para ser líder. E outro é o Joaquim Milheiro, que está nas seleções. E outro de que gosto muito, há muitos anos, é o Costeado, que está a treinar os guarda-redes no Gil Vicente.

E para Angola a família também foi?
Foi e adaptou-se bem. Houve uma altura em que comprei lá 50 kg de lagosta (risos). Num dia de folga fui às praias e aparecem logo os miúdos: “Patrão, patrão, lagosta, lagosta”. Eles lá vão ao mar e trazem o que queremos. Eu tinha um jipe e as lagostas todas soltas lá atrás, até emaranhavam pelos vidros (risos). Depois houve um jantar com o Paulo Catarro, correspondente da RTP, e eu disse logo: “Eu levo as lagostas” (risos). Era lagostas que nunca mais acabavam (risos). Acho que o meu colesterol naquela altura disparou.

Inácio com a bandeira do Zamalek, o clube que treinou no Egipto.
D.R.

Acabámos por não falar do Beira-Mar.
Beira-Mar, grande recordação.

Época e meia?
Sim. Um ano foi para subir de divisão e no outro ano, estive só até dezembro, salvo erro, porque depois fui embora para a Grécia.

Recordações?
Foi um projecto engraçado do Artur Filipe, que era o presidente do clube, e do sr. Zé Caxido, que era o homem do futebol. Gente muito boa, gostei muito deles. Fazem falta homens como aqueles no futebol. O que eles diziam era uma escritura, não falhava nada. Era um descanso para o treinador, porque já se sabe quando falham os salários é um problema. Estive em muitos clubes onde falhavam com os salários. O Beira-Mar, na sua história, só tinha ganho a Taça de Portugal, um grande feito como é evidente, mas nunca tinha sido campeão. Foi campeão da 2ª Liga, subimos de divisão, foi uma coisa extraordinária porque foi uma época vitoriosa, perdemos um ou dois jogos, o resto foi sempre a andar e depois a cidade… Adorei Aveiro. Tirando Lisboa e Porto, onde gostava de viver era em Aveiro. Uma cidade com uma boa qualidade de vida. Gostei muito e tenho pena do que está a acontecer ao Beira Mar e à Naval.

Depois de Angola, Naval não foi?
A Naval é uma história muito gira. Estou à espera de um fax porque eu era para ir para o Sudão – por acaso este ano tive a proposta para ir para o Sudão e não aceitei – e o contrato era bom, eram muitos dólares, valia a pena. Se soubesse o que sei hoje era capaz de não ter dito que não.

Inácio, à direita, com Bruno de Carvalho, junto à estátua de Cristiano Ronaldo, na Madeira.
D.R.

Onde é que ganhou mais dinheiro?
No Irão e no Egipto. Mas voltando ao Naval, uma sexta feira o Naval vai a Guimarães e leva 3-0 e era uma da manhã. Liga-me o Aprígio, o presidente da Naval. “Inácio, precisava de falar consigo, será que podia vir ter comigo amanhã às 9h ao meu escritório?”. E eu: “Para quem vem convidar um treinador e diz para o treinador estar às 9 da manhã na Figueira, é preciso ter uma grande lata, não é?” (risos). Chegámos a acordo e eu disse que queria um prémio de manutenção porque a Naval estava em último lugar, só tinha um ponto. Ele diz que só me dá um prémio se a equipa ficar até 10º lugar. Disse-lhe para colocar o valor no contrato porque ele ia pagar-me aquele prémio. Ele pediu-me para dizer aos jogadores que dava 15 mil euros a dividir por todos, por casa jogo que ganhássemos. “Não presidente, se não se importa, diga o presidente, porque tem outra força.” E porquê isto? Porque houve um presidente, que eu não vou dizer o nome, que prometeu um prémio e depois não pagou e depois disse que não tinha dito nada. Por acaso eles acreditaram em mim, mas eu é que fiquei mal na fotografia e eu como aprendi, disse para mim: “Não vais cair outra vez”. Começámos a ganhar, até que um dia vamos a Alvalade e peço-lhe para ele aumentar o prémio de jogo, mas ele recusa. Ganhámos o jogo (0-1) e ele diz: “Só me faltava esta merda, ainda por cima ganhámos isto” (risos). Comecei a perceber que aquilo era para não chegarmos ao 10º lugar, para não ter de pagar o prémio (risos). Resumindo e concluíndo, foi a melhor classificação de sempre, a Naval ficou em 8º lugar.

Como se dá a ida para o Sporting?
Em 2011 recebo uma chamada do Bruno de Carvalho. Estava eu no Leixões. Disse-lhe que estava no norte e encontramo-nos a meio caminho. Combinamos no “Típico”, o restaurante onde ia comer leitão. Eram umas quatro e meia da tarde, entre uma sandes de leitão, ele diz-me quais são as ideias que tem para o Sporting. Sabe que quando nós estamos fora do nosso clube, a gente começa a olhar e pensa: “Este clube não vai lá, este clube precisa de uma mudança, este clube precisa disto e daquilo”. Começámos a fazer as nossas conjecturas. E ele quando vem falar comigo tem um programa, apresenta-o em papel. O programa tinha cento e tal pontos, lembro-me de lhe ter perguntado: “Isto que está aqui você vai fazer, vai cumprir o que está aqui?”. Ele: “Se não cumprir, sou um grande mentiroso e mentiroso eu não sou”. Eu que não conhecia o Bruno de Carvalho de lado nenhum, digo-lhe: “Se você cumprir o que está aqui, eu vou apoiá- lo, mas vou-lhe dizer uma coisa, você é capaz de não ganhar as eleições, mas eu vou por convicções porque acho que é isso que o Sporting precisa”. Não discuti cargos, não discuti dinheiros, não discuti nada, só disse que o apoiava. Bom, vamos para as eleições… foram roubadas, eu sei que foram roubadas …

Inácio, à direita, a jogar matraquilhos com o antigo treinador do Liverpool, Gérard Houllier, na academia do Sporting.
D.R.

Roubadas como?
Vamos lá a ver. Às cinco da manhã o Bruno de Carvalho é presidente e o Rogério Alves é o presidente da Assembleia Geral, que era da outra lista. Isto é uma coisa que faz confusão, como é que da mesma lista o Eduardo Barroso não ganha juntamente com o Bruno de Carvalho. Comecei a ver as movimentações lá em cima, no terceiro piso: Paulo Cristovão, chamadas para aqui e chamadas para acolá e na altura que era para ser apresentado o novo presidente, a apresentação do presidente é no palanque cá em baixo e o presidente da Assembleia Geral do Sporting, não me lembro agora do nome, estava a combinar para irem todos os candidatos e depois apresentava-se o vencedor. E o Godinho Lopes disse que não, que não entrava naquelas palhaçadas e então o presidente diz: “Mas vamos todos lá para baixo”. E o Godinho Lopes: “Não, não entro nisso”. “Mas você ganhou”. “Ganhei?!”. Ele tinha o feedback de que não tinha ganho. Mas já vou explicar porque é que tenho a certeza de que aquilo foi roubado. E então é quando diz: “Vamos lá abaixo ao palanque”. O Dias Ferreira diz: “Não, não, isto não era uma palhaçada? Então vá você sozinho”. É quando o Godinho quer lá ir e é insultado e nem chega a ir ao palanque. Na AG do Sporting, que se realizou agora, o Bruno trouxe o tema para o Rui Morgado, ao perguntar porque é que os votos foram queimados e o Rui Morgado disse que não foi ele, que foi o Paulo Pereira Cristóvão que mandou queimar. Se uma coisa é correta e é séria, é preciso mandar queimar os votos? Eles são a prova real de que aquilo está tudo OK, porque é que é preciso mandar queimar os votos antes do tempo? É para não haver provas. Só por isto já dá para perceber que aquilo foi uma tramóia. Vai ficar a dúvida para sempre, mas para mim foram roubados. E apoiei o Bruno de Carvalho, sem o conhecer de lado nenhum. Em 2013 ele torna a convidar-me, eu estou com ele e só depois de ele ter ganho é que me convida para ir para o futebol. Só depois e não sabia sequer quanto é que ia ganhar. Quando ele diz o que vou ganhar, era muito menos do que eu ganhava no Moreirense, por isso não fui para o Sporting por cargos ou por dinheiro. Fui porque achava que o Sporting precisava daquilo, precisava daquilo.

Augusto Inácio com a Taça da Liga que conquistou o ano passado como treinador do Moreirense.
NurPhoto

Como diretor-geral que funções tinha em concreto?
O diretor-geral de futebol tem, juntamente com o presidente e com o treinador, fazer os plantéis, organizar a época.

Mas Bruno de Carvalho muda-lhe as funções.
Porque o Jorge Jesus quando chegou disse que não queria que eu continuasse. Eu também não falava com ele há mais de vinte e tal anos, foi assim.

Porque é que não se falavam?
Por causa de umas cenas que não interessam, que já foi falado, umas coisas que aconteceram em Felgueiras, que não gostei. Deixámo-nos de falar e depois ele foi para o Sporting e eu saí. Saí daquelas funções e meteram-me noutras que não tinham nada a ver com o futebol e por isso saí. Só que arrisquei três anos da minha carreira de treinador para dar ao Sporting, mais uma vez com prejuízo pessoal da minha parte em termos de carreira como treinador. Mais uma vez. Quando a pessoa tem 40 ou 42 anos, as coisas ainda são fáceis, quando já se tem cinquentas e tais, depois para dar a volta já é um bocadinho mais complicado, mas ainda tenho energia suficiente para ir à luta para vida e não tenho medo disso. Vivi 31 anos no Porto e puxei a família toda cá para baixo porque quando se vem para um cargo destes no Sporting é para estar alguns anos. Se pensasse que era só um ou dois anos nunca tinha saído do Porto. Trouxe as bagagens todas e vim viver para Alcochete, para estar mais perto da Academia. Estive dois anos ali e depois quando me colocaram nas relações internacionais, eu disse que não, não era vida para mim. Não vim para isto para o Sporting.

Chegou a fazer as pazes com o Jorge Jesus?
Proporcionou-se depois um almoço com o Jorge Jesus e eu sou uma pessoa que posso não falar com uma pessoa há mais de um ano, dez anos, mil anos mas depois a gente senta-se à conversa e a gente faz as pazes e esqueço-me de tudo. Fico amigo. Ou se faz as pazes ou não se fazem as pazes.

Quando soube que ele vinha para o Sporting não deve ter gostado da ideia…
Eu não sabia. Estava num curso da UEFA, em Fátima, quando soube pela rádio de que o Sporting tinha contratado o Jorge Jesus. Eu não sabia.

Não sabia?
Nunca soube.

Como diretor-geral não era suposto saber disso?
Era, mas o Bruno fez aquilo, queria manter segredo, foi uma coisa muito dele. Tudo bem. Quando comecei a ouvir falar do Jorge Jesus, não acreditei ma quando se concretizou disse que achava que o Sporting tinha contratado um grande treinador. Depois soube que por imposição do treinador… O Bruno quis-me nas relações internacionais, ao início fiquei, só para não haver muita confusão. Tive o cuidado, mesmo sem falar com ele, de defender o treinador do Sporting no programa da SIC, no “Play Off”, porque entendi que, independentemente das zangas, era o treinador do meu clube. Talvez por isso ele começou a perceber que eu não sou aquela pessoa tão má como isso. E quando se proporcionou um almoço, almoçámos e estivemos até às seis da tarde a falar de futebol. Depois disso já estivemos mais vezes. Ele gosta de falar de futebol comigo e eu também gosto de falar com ele, trocamos pontos de vista.

Augusto Inácio, à esquerda, é cumprimentado por Paulo Futre, à direita.
Nuno Fox

Gostou de ser dirigente?
Gostei, mas acho que tenho de ser um dirigente também com alguma autonomia. Não dirigente de ‘yes man’.

Sai magoado do Sporting?
Não saio magoado, saio triste. Triste porque não esperava sair do Sporting. Quem faz as malas depois de 31 anos a viver no Porto e vem para Lisboa…

Sai desiludido com Bruno de Carvalho?
Não. Eu sei o que é o futebol. Talvez, talvez num outro cargo no futebol, vamos imaginar assessor para o futebol… relações internacionais é que não tem nada a ver com futebol, especificamente. Uma coisa é não esperar que isso acontecesse, agora vendo o treinador impôr isto, não sei se haveria um outro lugar especifico para o futebol em que não colidisse. Mas eu acho que se fosse hoje, não havia problema nenhum em estar no futebol. Já falámos. Foi pena a conversa não ter sido antes.

Entretanto, no Moreirense, ganha a Taça da Liga, faz história, e segue para o Egipto.
Exacto.

Como correu no Egipto?
Isso é um filme do caraças. Foi uma coisa impressionante.

Gostou do Egipto? A sua mulher e filho foram consigo?
Eles ainda lá estiveram um mês mas depois começou a escola e tiveram que vir para cá. Mas para as pessoas terem uma noção, o Zamalek tem 40 milhões de fãs. Não são 40 mil, são 40 milhões. É um grande clube mas tem um presidente, o Mortada Mansour, que é uma espécie de ditador. A palavra é muito dura mas é isto. Uma vez fui à televisão, porque eles é que determinavam onde é que eu ia, a um canal que é visto por toda a Arábia, um canal daqueles “top” mesmo, e o programa começava às 11 da noite e tinha que acabar à meia noite e dez. Ele começou às onze e dez da noite e acabou às três da manhã. A conversa estava a ser tão interessante, eles não estavam habituados aquilo, foi um sucesso extraordinário. E o entrevistador foi guarda-redes do Al Ahli que já tinha posto o Amansour em tribunal, mas entretanto fizeram as pazes e foi por isso que eu fui ao programa. Uma grande confusão. E no primeiro mês aquilo correu às mil maravilhas porque eu trabalhava à vontade, ninguém se metia comigo. Mas para se ter uma ideia do que é Zamalek, em 18 meses tiveram 20 treinadores, em quatro meses trocaram três vezes de diretor desportivo, e três vezes de equipa médica…

Porquê?
Tinham que arranjar um culpado para alguma coisa e depois era assim: “Não pago salário àquele porque falhou um golo, não pago àquele porque faltou ao treino, mas deixa.o faltar porque quanto mais ele faltar melhor (risos)”. Eu só dizia: “Não acredito nisto, isto dá um filme”. Resumindo e concluíndo, nos jogos do campeonato, eu entrei a um sábado, no domingo fomos logo jogar e perdemos 2-0 e depois só perdemos no último jogo com o Al Ahli. E para eles ganhar ou perder o campeonato é ganhar ou perder com o Al Ahli. Só que o Al Ahli é mil vezes superior ao Zamalek, pela organização, pelos jogadores que tem, pela estrutura. Dá mil a zero. Mas de vez em quando há milagres e quando eles fazem milagres, desfazem o milagre logo na hora não se conseguem aguentar. E depois a coisa rebentou por causa do Chicabala.

Augsuto Inácio com a mulher e a Taça da Liga conquistada pelo Moreirense.
D.R.

Como assim?
Quando chego o Shikabala não jogava. Era o capitão da equipa, mas não joga e eu comecei a perceber porque é que ele não jogava. Então, o que era? O Shikabala é um Deus para os fãs e os estádios que levam 80, 90 mil pessoas, só tinham lá 800 pessoas, não chegava a 1.000 pessoas por causa de uns problemas há uns anos atrá em que morreu muita gente e o governo não queria que se repetisse e os estádios passaram a ter mais tropa do que espectadores. Então, comecei a pôr o Shikabala a jogar e, vou dizer uma coisa, este Shikabala que treinei no Zamalek…. se fosse aquele que esteve comigo no Zamalek dava um jeitão agora ao Sporting, como extremo. O homem ia à frente, vinha atrás defender, o homem atacava, defendia, um Shikabala completamente diferente e bastou só falar com ele duas coisas. Comecei a ver que ele claramente marcava a diferença, tecnicamente marcava a diferença. Diziam-me que só podia jogar meia hora, porque depois deixava de render. Houve muitos jogos quase a acabar que ele é que resolvia ou dava passes para golo. E eu : “É só meia hora, não é?”. Mas eles queriam que eu o tirasse de qualquer maneira da equipa.

Mas porquê?
Eu acho que por ciumeira. Porque cada vez que ele entrava para o aquecimento, as pessoas todas começavam “Shika, Shika, Shika”, ele ia agradecer aos adeptos. Ninguém gostava do presidente e o maior insulto que podes fazer a um egípcio é puxar do sapato e atirá-lo à pessoa. E houve uma altura que os adeptos puxaram do sapato e o presidente puxou do sapato e toda a gente puxou do sapato, se calhar não era para atirar, era só para ameaçar, mas toda a gente a mostrar os sapatos (risos). Quando eram os jogos internacionais, vamos imaginar, 15 mil pessoas, mil eram a favor do presidente e 14 mil era contra ele e então passavam o jogo todo em vez de apoiar o Zamalek, era tudo a insultar o presidente e a gritar pelo Chicabala. “Shika, Shika, Shika”. Por isso acho que havia ciumeira. Ele queria mandar o Shikabala embora, como eu não podia falar para a imprensa a não ser com ordens deles, ele foi dizer para a televisão que eu queria mandar oito jogadores embora. Eu nunca disse nada. Numa altura saiu na imprensa que o treinador dispensa Shikabala. As pessoas viam-me na rua, aquilo é uma cambada de malucos por futebol, e diziam me: “Coach Shikabala out, no. Stay, stay”. E comecei a perceber que o foco estava em mim e ele soltinho. Espera ai que eu já te digo, fui para uma conferência de imprensa de um torneio que íamos ter e é quando sai aquela cena toda.

Em que pega na lata de Pepsi e diz que aquilo é uma Pepsi e não uma Coca-cola?
Sim. A determinada altura explico que é o Amansour quem que quer mandar o Chicabala embora, não eu. Toda a gente à volta do presidente abana com a cabeça que sim, porque ninguém quer perder o emprego. E às tantas digo: “Eu não tenho medo de perder o emprego, isto para mim é uma Pepsi Cola e será sempre uma Pepsi Cola”. Ter esta afronta para um ditador daqueles é uma coisa impressionante, os adeptos, os fãs ficaram todos do meu lado: “Tu tiveste coragem, tu és o único que o enfrentaste”.

Augusto Inácio, à esquerda, fez as pazes com Jorge Jesus depois deste chegar ao Sporting, pela mão de Bruno de Carvalho, à direita.
D.R.

Mas depois fica retido não é?
Nós estamos em Alexandria, que é quase a três horas de carro, ele marca-me uma reunião no Cairo, para ter uma reunião com ele no clube. Eu tinha marcado treino para o outro dia, para as seis da tarde. Pegámos nas malas, chegámos lá eram umas duas e tal da manhã, o empregado diz que o presidente vem já…Quatro e tal da manhã, e vêm dizer que o presidente nos recebe no dia seguinte às duas da tarde. Era a lei do desgaste. Eu tinha de estar despachado às três para poder ir dar treino. Se não aparecesse ao treino podia levar com um processo disciplinar. Chega às duas e nada. Quando estamos perto das três da tarde digo ao meu pessoal: “ Vamos embora”. Aparecem uns seis, sete gajos a fazer barreira, comecei a dizer nomes em português que eles não entendem, a insultá-los. “O que é que tu queres pá? Cheiras mal”. E eles mandam-me com a peitaça, como quem diz: não sais daqui. Comecei a gritar alto para as pessoas ouvirem lá fora, o chefe de segurança viu, faz sinal aos gajos, eles dão uma abertura e eu saí. Só que quando vou para sair começam a fechar as portas e portões, uns atrás dos outros. Fico à torreira do sol e resolvi ligar para a embaixada, para a Drª Madalena Fischer. Ela liga para uns serviços e diz que estão uns portugueses a ser maltratados em Zalamalek e que é preciso ter cuidado. Ligaram para o Amansour e disseram-lhe para ter cuidado na forma como nos estavam a tratar. Um quarto de hora depois de eu ter feito a chamada, chegam duas funcionárias da embaixada. Contei tudo o que se tinha passado. Entretanto estou numa sala e entra o Amansour já muito simpático. Vamos para o gabinete dele, trocamos umas palavras mas lá chegamos a acordo. Eu percebi que ele não queria pagar os três meses que faltavam. Pagou só mês e meio. Ele chamou a televisão e diz: “Como vocês vêem nós damo-nos muito bem com os portugueses, a embaixada portuguesa está aqui, porque nos damos muito bem, temos aqui um grande homem, um grande treinador, uma grande pessoa” (risos). No fim daquilo tudo, ele vira-se para mim e diz: “Pepsi Cola ou Coca-Cola?”. Juro que é verdade, ele lembrou-se daquela cena. E eu em português: “É melhor não saberes” (risos). Depois falei em português, mas de certeza que alguém lhe deve ter traduzido, “Olha tu nem és Pepsi Cola, nem és Coca Cola, tu és um grande filho da p****” (risos).

Augusto Inácio com as netas, a filha e a mulher.
D.R.

Qual o desafio que mais gostava de ter agora?
Ser selecionador. Gostava de poder analisar o futebol de uma outra forma que ainda não vivi. Sendo selecionador acho que me daria uma visão que complementa tudo aquilo que já fiz. Gosto muito de ver jogos e jogadores. Modéstia à parte acho que seria um grande scout. Porque é preciso saber analisar jogadores para envergar camisolas grandes e há jogadores que não chegam lá, mas por vezes vezes enganam. Eu raramente me engano, muito raramente me engano em relação a um jogador. E num clube grande, quando se faz uma contratação, não se pode enganar muitas vezes, porque é dinheiro que se está a deitar a rua. Como acho que tenho jeito para isso, sendo selecionador, é um bocado parecido em termos de scouting em relação ao valor que ele têm, só que numa outra perspetiva, no modelo que eu quero jogar, naquilo que é a qualidade do país e dos jogadores. É um desafio aliciante.

Já não tem ligação nenhuma com o Sporting?
Nada com o Sporting. Estou na RTP, no “Trio d’Ataque” e depois tenho algumas pessoas que me pedem ajuda e opinião sobre jogadores. É uma empresa mas não me paga nada.

Enquanto treinador qual o jogador que mais o marcou?
André Cruz é o primeiro que vem à cabeça. Tem a ver com a personalidade, o caráter, com a liderança, com o ser humano que é. Às vezes digo isto como exemplo, quem conhece o Beto que jogou no Sporting como central, nunca fez uma época tão boa como quando fez com o André Cruz ao lado. Há jogadores que fazem crescer outros. E ele, pela sua experiência, pela sua personalidade, foi um jogador top, de classe internacional. Mas não é só o jogador, é o homem também. Por isso é ele que vem logo à memória e que está na minha seleção mundial.

Augusto Inácio é um avô babado.
D.R.

O seu filho mais novo joga futebol?
Joga nos iniciados.

E tem pinta de jogador?
Não. Já lhe disse a ele que não.

Tem pena de nenhum dos filhos ter seguido as suas pisadas no futebol?
Não. É muito complicado e é preciso ter um espírito muito grande para ser jogador de futebol. Não é assim tão fácil. As pessoas pensam que é uma vida fácil e que é só milhões. Não é. Além do dom é preciso ter espírito para ser jogador de futebol de nível. É preciso muito espírito de sacrifício e ter cabeça.

Sei que lhe assaltaram a casa já era treinador. Levaram muita coisa?
Levaram os Stromps, os Dragões de Ouro, a medalha da final da Taça das Taças, a medalha da Liga dos Campeões, da Supertaça, camisolas, equipamentos. Nunca consegui reaver. Tenho o equipamento com o Nº20 com que joguei no mundial, tenho uma braçadeira do Beira-Mar de treinador quando fui campeão. De resto os grandes títulos…foi tudo.

Fonte: tribunaexpresso.pt

Data: 25/02/2018
Local: tribunaexpresso.pt
Evento: Entrevista

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