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Sexta-feira, Abril 19, 2024

Neste dia… Entrevista a Negrete em 2010: «O Oceano era um poço de força, derrubava toda a gente, companheiros de equipa incluídos»

A 31 de Agosto de 1986, o mexicano marcou o seu primeiro golo no Sporting. Ao i, Manuel Negrete conta isso e muito mais

Há a ideia de que os mexicanos falam baixinho e como se estivessem a pedir desculpa. É uma característica deles que não passa disso mesmo, uma característica. Falámos com Negrete, um dos heróis do Mundial-86, que jogou no Sporting, e confirmámos essa tendência. O tom de voz de Negrete (cinco golos em 21 jogos pelo Sporting) é quase tão alto como um sussurro e ele fala misericordiosamente, entre o “se quiser” e o “está a ouvir?”. O i ouviu tudo o que disse Negrete, à hora do Maiorca-Real Madrid.

Boa tarde. Posso falar com Manuel Negrete, se faz favor?

É o próprio. Quem fala?

É Rui Miguel Tovar, de Portugal. Do jornal i.

Qué tal? Todo bien? [afasta o telefone e diz para alguém, entre risos: é de Portugal, vê lá tu. De um jornal]

Sim, tudo bem.

Espera aí um segundo, deixa baixar o volume do jogo.

[Olha, ele trata-me por tu!] Qual jogo?

O Maiorca-Real Madrid. Eh, estou a ver os teus paysanos: Mourinho e Ronaldo. Está 0-0 aos sete minutos.

Quero falar contigo porque faz hoje anos que marcaste o teu primeiro golo no Sporting. Lembras-te?

Cómo no? Um chapéu sobre um defesa, outro chapéu sobre outro defesa e bola entre as pernas do guarda-redes. Tudo sem deixar a bola cair no chão. Só não me lembro do adversário.

Foi o Rio Ave.

Ah, sim. Lá do Norte. Vila…

Do Conde.

Pois, grande golo. O problema é que nessa tarde empatámos, não foi?

Sim, 2-2.

E estávamos a ganhar 2-0. Eu marquei o 1-0, o Meade o 2-0, perto do intervalo [43”], e depois eles empataram [Jaime Graça, 75” e Alonso, 88”]. Se não me engano o meu golo foi eleito o melhor dessa jornada, no “Domingo Desportivo”. Pergunte aí que alguém se lembra. Ou você mesmo. Quantos anos tinhas?

Nove.

Só? E lembras-te desse golo?

Do golo, sim. Do detalhe do melhor golo da jornada, já não. Só via o “Domingo Desportivo” nas férias. Em tempo de aulas, deitava-me mais cedo.

Pois, fazias bem. Eu fazia o mesmo em Lisboa, mas via o “Domingo Desportivo”.

Vivias sozinho?

Não, estava sempre acompanhado dos brasileiros do Sporting. O Mário, o Zinho e o Silvinho. Na Quinta do Lambert, ao pé do estádio. Eles mostraram-me Lisboa de uma ponta à outra.

E dormias cedo?

Sim, sim. Casa, treino, almoço, casa, jantar, casa. Tudo muito simples.

E com quem ias jantar?

Olha, às vezes, ia com o Eusébio. Falávamos horas e horas sobre futebol. Ele ensinou-me muito sobre o futebol português de então.

Quais eram as tuas dificuldades?

O campo pesado e pequeno. No México, os jogos costumam ser ao meio-dia, com o sol a pique e uns estádios grandes, com espaço entre o relvado e as bancadas. Aí, eram muitas vezes ao pôr do Sol ou à noite, em relvados e estádios incríveis, sem condições. E quando chovia, tudo piorava. Precisava de ficar em Lisboa mais um ano, porque o primeiro seria obrigatoriamente de adaptação.

Mas não ficaste. Foste para onde?

Para o Sporting… de Gijón, em Espanha. Ainda no decorrer dessa época 86-87.

O que falhou então para continuar em Alvalade?

Eu queria. Mucho, muchísimo. Os adeptos acarinhavam-me, diziam-me sempre a mesma palavra que era paciência, paciência, desde aquela porta famosa [10A] até ao campo de treinos. Mas o Sporting trocou de treinadores nesse ano. Primeiro, o Manuel José. Depois, o Marinho. Finalmente, o Keith Burkinshaw, um inglês. E a minha influência foi diminuindo, diminuindo, até parar de jogar. Ai, ai, esses directores do Sporting. O meu último jogo foi com o Salgueiros.

No Vidal Pinheiro?

Isso mesmo. E estava a chover a potes. Entrei na segunda parte e não fiz nada. Isso foi em Janeiro de 1987.

Então foste a tempo de jogar com Barcelona e Benfica?

Ao Barcelona até marquei um golo, na Taça UEFA. Ganhámos 2-1 em Alvalade mas como tínhamos perdido 1-0 no Camp Nou, fomos eliminados. Aliás, nessa Taça UEFA marquei um outro golo, ao Akranes, quando ganhámos lá 9-0.

E o Benfica?

Ah, os 7-1. Fui um espectador atento [risos]. Diz-me um lugar melhor do que no banco de suplentes! Eu ali tão perto da glória. Grande jogo e grande vitória. Os clássicos eram sempre assim. Com o FC Porto de Futre, Madjer e Gomes era a mesma coisa.

O FC Porto de Futre, Madjer e Gomes. E o Sporting era de quem?

Ehhh, tantos. O Damas, grande guarda-redes. Esteve no Mundial-86, como eu. O Oceano que era um poço de força, derrubava toda a gente, companheiros de equipa incluídos. Era ele que nos abria o caminho para a grande área adversária. O Mário, um brasileiro cheio de talento. Os miúdos da formação como o Litos, o Fernando Mendes, o Mário Jorge. E o capitão Manuel Fernandes. Nos estágios, almoçava e jantava na mesa dele.

Porquê?

Na mesa do capitão, vinha sempre mais um jarro de vinho, como bónus. Era isso e Coca-Cola. No México, não se bebia muito. Aqui, bebia sem parar. E, lá está, na mesa do capitão era a dobrar.

Por falar nisso de dobrar, alguma vez marcaste um outro golo como aquele no México-86?

Não, e tenho pena. No Sporting, por acaso, não tentei. Mas no Sporting Gijón tentei com o Real Madrid. A bola saiu ao lado. Esse do Mundial-86 foi um espectáculo [pontapé de moinho no México-Bulgária, 2-0, para os oitavos-de-final]. Deu a volta ao mundo. Às vezes, perdia-me na estrada quando ia ter com os meus companheiros de equipa do Sporting para almoços e jantares. Então, pedia ajuda às pessoas e elas reconheciam-me: “Olha o Negrete, estás bom?” Não só em Lisboa… Acreditas que na Bulgária também me conhecem e gostam de mim? Pelo menos foi o que me disse o Stoitchkov [Hristo]. Uma vez, entreguei-lhe um prémio e ele disse–me que toda a gente na Bulgária me idolatra. Que ainda se lembram do meu golo a eles em 1986.

Ok, obrigado Negrete. Já agora, quanto é que está o Real Madrid?

[com voz de jornalista de rádio] Triiiinta e sete minutos e 0-0.

Fonte: ionline

Data: 31/08/2010
Local: ionline
Evento: Entrevista a Negrete

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