RUGIDO VERDE

Levantar e levantar de novo, até que os cordeiros se tornem Leões!

Sexta-feira, Abril 26, 2024

A HISTÓRIA DE ADEMAR – Um futebolista que nasceu no circo mas… não dá cambalhotas

Há coisas do “arco-da-velha”… Quem dá cambalhotas acrobáticas nos campos de futebol quando marca um golo é o Folha – mas quem nasceu no circo… não foi ele, o do “duplo mortal”, que no primeiro impulso foi bater com os pés nas Antas para depois ir cair na Luz!

Quem na realidade nasceu num circo e teve a sua infância ligada ao maior espectáculo do Mundo foi o Ademar, o jovem futebolista do Sporting de que já tem muito que contar na pequena história da sua vida.

Os pais de Ademar eram artistas de circo. Essa a razão porque ele nasceu e viveu a infância naquele mundo maravilhoso das crianças, entre leões, tigres e cães amestrados, ilusionistas, trapezistas e palhaços de caras grotescamente pintadas.

Até aos seis anos foi esse o Mundo do pequeno Ademar. Mas, depois, tudo se modificou por imperativos muito importantes, pois os pais desejavam para os filhos uma vida diferente, para que ele e a irmã pudessem estudar, seguir os seus cursos e entrassem numa sociedade diferente, em que não necessitassem de andar sempre com a trouxa às costas, de terra em terra, qual judeu errante.

Mas, curiosamente por ironias do destino, a profissão de hoje do Ademar, também envolve em muitas circunstâncias, imagens semelhantes àquelas em que os seus familiares mais queridos, por vezes se vêem envolvidos… Como futebolista, o Ademar também tem de estar, hoje aqui e amanhã ali. Só, e está aí a diferença, que essas ausências da base não são prolongadas.

Voltando a esses tempos da sua infância, o Ademar sabe que até aos seis anos nunca lhe faltaram oportunidades para as suas brincadeiras, e que os amigos à sua volta eram sempre muitos e isso agradava-lhe. Foi um período curioso em que o Ademar sem o saber, já começara a treinar-se para um dia mais tarde não estranhar quando ao serviço do futebol, tivesse que viajar e percorrer terras estranhas, pois, nessa altura, os pais estiveram dois anos na Alemanha, e outros dois em Espanha, com o Circo onde trabalhavam. Foram tempos épicos, a proporcionarem ao Waldemar e à Adélia, o amealhar de alguns escudos para o futuro, dinheiro esse que contribuiu para que aos filhos nada faltasse. Hoje, os pais de Ademar, actualmente em repouso, com a mãe já reformada, anote-se, mas o pai, quem sabe, pode muito bem de uma hora para a outra voltar à pista, pois ele tem aquela doença no sangue, não resistindo facilmente aos assédios do público que não esquece facilmente o palhaço Waldemar. Hoje os pais, dizíamos, são criaturas felizes que revêem nos filhos os tempos em que fizeram deles cidadãos úteis à sociedade. O Ademar, trabalhando num outro Circo o do futebol a merecer frequentemente os aplausos do público e a Adélia, continuando na profissão, senhora de um circo que é dela, o “Ringland”, actualmente em viagem por terras de Espanha.

COVA DA PIEDADE E CORROIOS NA VIDA DE ADEMAR

Mas, como atrás dizíamos, tinha o Ademar seis anos, estavam os pais a trabalhar em Espanha, quando resolveram dar novo rumo à vida do miúdo. Ei-lo a caminho de Portugal, recambiado para a Cova da Piedade onde passou a viver em casa de uma senhora, a D. Lucinda que, tal como o marido tinham sido também artistas de Circo, e que, na altura, ela já não trabalhava, o marido é que sim. E foi, então, que o Ademar entrou na Escola, começando nova etapa na sua vida.

Na Escola da Cova da Piedade. o Ademar que não era peco nenhum nos estudos, gostava deveras dos livros, da sua leitura, dos seus desenhos, foi progredindo sempre. Não só nos estudos mas também na bola que já entrara na sua vida. Não faltavam na região terrenos baldios para dar largas à sua nova paixão, a bola.

Pouco tempo depois nova mudança, o Ademar foi para Corroios viver em casa da avó e, nessa ocasião com a Instrução Primária já feita, continuou a estudar no Seixal, na Escola Preparatória. Entretanto, o bichinho do futebol enraizou-se nele. Passou até a ir mais cedo para o Seixal, porque assim, já lhe sobrava tempo para repartir entre os estudos e o futebol. Nessa época começou a despontar um dos bons valores do nosso futebol actual.

Em Corroios, a casa do Ademar ficava a meia dúzia de metros do campo do clube local e não admira, portanto, que fosse o Desportivo local, o clube que lhe proporcionou vestir a primeira camisola. A partir daí, nos jogos dos Torneios particulares em que participava, o Ademar passou de imediato a ser a figura principal, aquele que mais aplausos obtinha do público que o ia ver jogar.

Ademar nos iniciados.

O INGRESSO NOS “LEÕES”

Em 1972, ia o Ademar fazer 13 anos, aconteceu uma coisa “muito gira” – diz-nos – que o levou a Alvalade. Vamos ver como isso foi.

A avó do Ademar tinha um primo, o Hugo Sarmento, que em tempos foi titular do Sporting, na posição de extremo direito, isto na época do famoso Seminário. Pois um dia a avó perguntou ao Ademar se queria ir com ela a Lisboa, visto que tinha um assunto a tratar com o Hugo, que segundo uma notícia dada por um jornal ia ser treinador das Escolas de jogadores do Sporting. Ele concordou e lá foram.

Aconteceu, porém, que, em Alvalade, do Hugo… nem cheiro. A notícia publicada estava errada e quando o miúdo de Corroios perguntou ao funcionário sportinguista sr. Pimentel, pelo Hugo, aquele quis saber “pró que era” e, claro, o Ademar não ocultou. Quanto ao assunto da avó teria que ficar adiado, mas, no resto, não havia problema pois o Ademar seria inscrito nas escolas dos “leões”. Inicialmente não queria dizer o seu nome, o número que calçava, nem a morada, mas o sr. Pimentel teve tal poder de persuasão que levou a melhor.

A este sr. Pimentel deve, portanto, o Sporting a presença do Ademar nas suas fileiras. Os tempos foram passando, o Ademar quase não se lembrava já daquele episódio, quando recebeu em casa um postal para se apresentar em Alvalade. Não hesitou. Nessa altura já jogava no Sporting, um rapaz lá do sitio, amigo dele, o Rodrigues Dias actualmente no Portimonense, e a ideia de ir a Alvalade, portanto, não lhe desagradou.

Era o primeiro passo de Ademar na sua futura carreira de profissional de futebol, pois transposta a porta 10 do Estádio de Alvalade… nunca mais de lá saiu.

O primeiro treinador de Ademar, aquele que primeiro o observou foi o Pedro Gomes, que de pronto o escolheu e com o qual passou a treinar todas as quintas feiras à tardinha. Mas, não seria com ele que o Ademar se lançaria. Isso viria a acontecer com outro técnico que também foi defesa do Sporting, o Hilário, que dirigia os Iniciados, para onde o Ademar transitou e se fixou, vindo a conquistar em dois anos seguidos, os títulos de campeão regional. Recorde-se como isso aconteceu, logo na primeira época oficial do Ademar. Na final, em Pina Manique o Sporting venceu o Benfica por 3-2. Na época seguinte, também em Pina Manique, a vitória dos “leões” foi sobre o Belenenses por 2-1. Nesse dia houve um episódio dramático que ia comprometendo tudo. O Artur, que hoje joga em Penafiel, perdeu a cabeça e foi expulso quando havia só 10 minutos de jogo, obrigando os restantes sportinguistas a um esforço duplo para conseguirem a vitória. O treinador já não era o Hilário mas sim o César Nascimento e, no final, acabou por haver festa rija…

NOVO TITULO DESTA VEZ NACIONAL

Seguiu-se a categoria de Juvenis, ainda com César Nascimento no comando técnico e, na primeira época, “jejum” absoluto para depois vir a recompensa. No regional, na final, o Benfica venceu o Sporting por 2-0. Depois, para o “Nacional”, uma espécie de desforra: o Sporting, na sua série, a mesma dos “encarnados”, foi à Luz ganhar por 1-0, e, depois, em Alvalade bisou o triunfo, desta vez, por 2-0. Como o Sporting de Braga vencera a outra série, a final entre “ledes” e bracarenses foi em Coimbra e terminou com êxito sportinguista por 2-0. Êxito total, reforçado com quatro internacionalizações na selecção de juvenis. Registe-se ainda, como complemento, que da equipa de Juvenis que proporcionou tantas alegrias a Ademar, faziam parte, entre outros, o Freire e o Mota, ainda no Sporting; o Artur, no Penafiel; o Tomáz, no Académico de Coimbra e o Baltasar, em Viseu.

A seguir a tantos êxitos, uma época de abstinência, quando subiu aos Juniores, orientados pelo ex-cufista Fernando, adjunto também de “mister” Hagan, na 1ª Equipa.

CARREIRA FULGURANTE NA EQUIPA PRINCIPAL

“Estrela” nos Juniores, apreciado por adeptos e dirigentes, não admira que a ascensão de Ademar se processasse normalmente e que a sua altura de subir mais um degrau, o mais importante, o definitivo, viesse a surgir. E foi o que aconteceu com Rodrigues Dias no comando, Ademar teve a sua maior alegria no dia em que alinhou, pela 1ª vez na equipa principal num jogo no Estoril, para o “Nacional” sendo a estreia duplamente feliz. O Sporting ganhou por 2-0 e o Ademar teve uma excelente exibição. Na jornada seguinte, contra o Marítimo, só jogou na 2ª parte e depois, para a “Taça”, defrontou o Varzim na Póvoa com nova vitória (2-1) e novamente, uma exibição em cheio a originar a passagem a titular.

Na equipa de honra, Ademar conseguiu firmar os seus créditos, tornando-se, praticamente indiscutível. Jogador utilíssimo dadas as suas características que lhe permitem alinhar a qualquer lugar da linha média ou da defesa.

A VIDA MILITAR

AS ALEGRIAS DA “TAÇA” E DO TÍTULO NACIONAL

Carreira fulgurante a do jovem Ademar, titular indiscutível do Sporting, com momentos incomparáveis, como a conquista da “Taça de Portugal” em 77-78, com repetição da final no Jamor, contra o F.C. Porto (1-1 e 2-1), e a vitória no “Nacional da 1ª Divisão” na época passada. Esta a maior de quantas alegrias tem festejado na sua vida. Entretanto, um atraso, o da vida militar, em Paço de Arcos, um dever que todo o cidadão tem obrigação de cumprir e que o Ademar cumpriu com todo o entusiasmo. Simplesmente houve um óbice a complicar-lhe a carreira. Não podia treinar-se convenientemente, o que lhe prejudicava a boa forma. Valeu-lhe então, após a recruta, a compreensão de três oficiais, homens de desporto que lhe deram algumas facilidades para poder ter, regularmente, a sua preparação no clube. Todas as complicações se acabaram quando voltou à situação civil, pelo que hoje, pode já entregar-se normalmente aos seus deveres de futebolista profissional, o que decerto lhe poderá propiciar maiores vantagens na sua carreira.

PAÍSES ONDE JÁ ESTEVE

Ademar é um futebolista que já conhece um bom pedaço da orbe terrestre. Vejamos: Espanha, Bélgica, França, Mónaco, Alemanha, Irlanda, Inglaterra, Escócia, Grécia, Suíça, Austria, Hungria, Angola, China, Tailândia, Canadá, Estados Unidos e Marrocos. Trata-se de uma “colecção” razoável, que o Ademar, devido à sua juventude, pensa que virá a ser, ainda, notavelmente aumentada.

ALEGRIAS E TRISTEZAS

Alegrias e tristezas são uma constante do futebol. Anotem-se as principais na carreira de Ademar. Além do triunfo no “Nacional” e na “Taça”, há a satisfação pelas internacionalizações. Quanto aos piores momentos, Ademar cita a inquietante noite em que o Académico de Viseu veio vencer a Alvalade e, ainda, a que terá sido a jornada mais triste de todas, pela Selecção Junior. Aconteceu assim: Em jogo do “Europeu”, Portugal foi à Áustria onde ganhou por 1-0. Euforia e grande satisfação. O reverso da medalha foi no jogo de cá, também em Alvalade, com Portugal a perder pelo mesmo score. Foi necessário recorrer às grandes penalidades e, nestas… fomos eliminados porque, tanto Ademar com Freire, desperdiçaram as que tiveram de apontar. Ambos, desesperadamente, tiveram ataques de convulsivo choro. É a vida, na qual nem tudo são rosas…

A VIDA DE SOLTEIRO E BOA, MAS…

Ademar é um jovem diferente de muitos outros, em certos aspectos, como seja o dos namoricos, de planos futuros. Por enquanto não tem namoro e, nem sequer pensa em casamento, concluindo que a vida de solteiro é boa, mas…

Ora neste mas… quer dizer que Ademar considera que ainda é novo para dar o nó. Só quando tiver uns 26 anos poderá começar a pensar no assunto, isto, claro, se entretanto não aparecer a outra parte da sua alma, como se diz nos romances. Um aspecto que Ademar também gostou de falar foi aquele, que diz respeito aos jogadores feitos nos clubes e aos que vêm de fora. Norma geral, os que são da casa não têm vantagens financeiras como os outros. Os clubes deviam ver isto bem… Terá Ademar aflorado o tema por se sentir prejudicado? Ele diz que não, pois o seu prejuízo não terá sido muito grande, visto que quando fez o seu mais recente contrato, que o ligou ao clube até 1983, confessa que este já foi, muito razoável. E o próximo – segundo espera – ainda há-de ser melhor!

E, a propósito, qual foi o primeiro dinheiro ganho pelo Ademar no futebol? É com um sorriso que ele revela ter sido nos tempos de Pedro Gomes que começou a ganhar 120 escudos por vitória fora e 80 escudos em casa, o que dava para uma ou outra “matinée” e para uma ou duas laranjadas. De resto, antes disso, o prémio, nos Iniciados era, de vez em quando, um lanche depois do treino.

Eis a história de um jogador que muito promete ao Sporting e ao futebol nacional, de um rapaz simples e sincero, que foge de certos “ambientes” como o diabo da cruz. Embora jovem, ele já sabe como elas “mordem”…

OS JOGADORES QUE MAS APRECIA…

O jovem Ademar, como futebolista, já passou a idade da esperança para se tornar na de certeza. Se não se perder pelo caminho… pode, muito bem, vir a ser um dos jogadores de elite no futebol português, pois qualidades não lhe faltam. Tendo-se salientado como médio, embora a defesa tenha igualmente produzido exibições dignas de realce. Ademar, que mostra larga preferência pelo meio campo, a dada altura do nosso longo diálogo, quando houve referência a outros futebolistas que ele apreciou ou aprecia, foi, peremptório ao eleger o inconfundível Eusébio. Referindo-se aos mais recentes distinguiu dois homens da sua posição, o infortunado benfiquista Vitor Martins e aquele que é seu actual companheiro no Sporting, Samuel Fraguito. Completa Ademar: Trata-se de dois jogadores de técnica e inteligência invulgares que, sinceramente, tenho tentado imitar nalgumas jogadas em que o Vitor era inconfundível e em que o Fraguito ainda hoje dá lições…

ADEMAR CANALIZADOR

Um episódio da vida de Ademar que nada tem a ver com os futebois, nem com os estudos. Um dia procurou emprego e arranjou-o. Sabem em que profissão? No de canalizador, mais propriamente como ajudante. Mas como o emprego não lhe agradava, desistiu. Não passou de uma experiência que não lhe deixou saudades…

Ironias do destino…

UM É QUE DÁ CAMBALHOTAS OUTRO E QUE NASCEU NO CIRCO

O espírito inventivo… o bom humor dos portugueses… a sua facilidade de trocadilhos… a maneira de aproveitar situações… são extensivas ao futebol! O leitor sabe, por exemplo, que no Boavista existe um grande jogador, que sempre que marca um golo, festeja o acontecimento com uma acrobática cambalhota. Trata-se do Folha. Pois certo dia, em Alvalade, quando nos últimos minutos da partida contra o Vitória de Setúbal, o Ademar marcou o tento do triunfo, por sinal magnificamente executado, logo um espectador atento, dos tais que de tudo tiram partido para ironizar, logo reagiu com a seguinte frase:

– O Boavista tem um Folha que não foi palhaço e dá cambalhotas, o Sporting tem um Ademar que… quase o foi e não as dá…

FICHA:
NOME – Ademar Moreira Marques
NATURALIDADE – Lisboa
NASCIMENTO – 4 de Março de 159
PAIS – Waldemar Dias Marques e Adélia Jarque Moreira Marques
IRMÃOS – Uma irmã, mais velha que ele, a Maria Helena.
ESTADO CIVIL – Solteiro
CLUBES – Começou em 1973 no Sporting. Contrato até Julho de 1983.
TÍTULOS – Duas vezes Campeão de Lisboa, em Iniciados, uma vez Campeão Nacional em Juvenis, um título nacional em Seniores e uma “Taça de Portugal”, também em Seniores.
INTERNACIONALIZAÇÕES – 4 vezes em Juvenis (Selecção do Oeste da França, Polónia, Holanda e França). Onze pelos Juniores, (Polónia, Marrocos, Áustria, Alemanha Federal(2), França, México, Bélgica, Checoslováquia e Hungria (2), e três pelas “Esperanças”, (Dinamarca (2) e Bélgica).
HABILITAÇÕES LITERÁRIAS – 5º Ano Industrial.

Fonte: Ídolos do Desporto

Data: 14/06/1981
Local: Revista Ídolos do Desporto N71

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