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Quinta-feira, Abril 25, 2024

Sporting A.C / D.C (Antes Corona, Depois Corona)

O surto epidémico de coronavírus, cujo enquadramento médico-sanitário não cabe aqui avaliar, motivou, no cúmulo das medidas de prevenção e contenção adoptadas, a declaração do Estado de Emergência (EE) pelas altas instâncias políticas. O EE interrompeu ou afectou muitas actividades económicas, impactou quer a produção de bens, quer o seu consumo, e provocou alterações profundas no dia-a-dia das pessoas. Para além do elevado desgaste, em especial dos profissionais de saúde, e das restrições de mobilidade, liberdade de relacionamento e direito à resistência, muita gente perdeu o emprego ou entrou em regimes de layoff, ficando em situações mais precárias com diminuição de remunerações. As duas renovações quinzenais do EE, recentemente ultrapassadas, estenderam os efeitos no tecido social do país.

Antes de tudo isto acontecer, a montante da conjuntura actual e das suas implicações, que colocam à prova a estrutura e o funcionamento da sociedade como um todo, nos mesmos moldes, havia um situacionismo institucional transversal a vários sectores, entranhado nos organismos públicos e/ou nos lobbys que os influenciam ou controlam.

Os centros de poder, que movimentam muitas influências e capitais, e são por isso muito atractivos, tornaram-se refúgio de certas cliques e caciques que mais não fazem que fortificarem-se e perpetuarem-se em postos de controlo e decisão. Mudando de pele e de papel consoante as circunstâncias, elevados e mascarados pela propaganda, acumulam cargos com as maiores mordomias e regalias, onde somam actos lesivos, subindo na vida e ampliando o campo de acção, enriquecendo à custa do empobrecimento das instituições e dos que representam, sendo os principais fomentadores das discrepâncias que os alimentam.

Se algumas instituições e corporações já eram opacas ou herméticas na sua actuação quotidiana, com uma retórica autocrática e reaccionária, e amiúde defraudavam ética e deontologicamente o âmbito da sua acção (pelo menos, as que supostamente se regem por estatutos ou código profissional, se organizam em ordens ou sindicatos, ou os representantes políticos eleitos), existe nesta fase o risco de haver um diferenciamento social ainda mais abusivo, que gere maiores desigualdades e exploração.

Portanto, antes mesmo do início da propagação pandémica, já existia em várias instituições uma espécie de Estado de Excepção fora-da-lei, de natureza oligárquica e corporativa, e o Sporting passara mesmo a ser um dos exemplos paradigmáticos. Por exemplo, no primeiro ano e tal da vigência dos actuais Órgãos Sociais, sem haver riscos excepcionais de contágio como os surgidos durante o 1º trimestre de 2020, as Assembleias Gerais já não se realizavam por requerimento dos sócios, mostrando o Presidente da Mesa várias vezes ser avesso a reuniões onde pudessem discutir o que quisessem, decidir consoante o seu discernimento e votar com sua vontade e determinação. E não se trata apenas da AG Destitutiva negada, o rol é extenso.

A pandemia e as medidas de contenção adoptadas, abrangendo a limitação coerciva de direitos humanos, constitucionais e associativos, tema tão caro a Rogério Alves, e abordado nos painéis televisivos de opinião onde teve, entretanto, proeminência, não geraram o problema dos antagonismos e clivagens sociais. Fossem de ordem política, económica, ou circunstanciais às várias dimensões nacionais, públicas, ou societárias, e concretamente do Sporting Clube de Portugal. Estes têm causas mais antigas. A crise já vinha de trás, era anterior, por muito útil que seja inverter a ordem mais elementar dos acontecimentos. Nada de novo nesse aspecto aconteceu.

O problema da divergência entre o poder institucional e corporativo, exercido nas cúpulas administrativas / directivas, através dos seus representantes directos, e o cidadão / sócio comum, os representados que os elegeram ou suportam, não é um epifenómeno recente. Foi-se extremando, muitas vezes sob a influência de agentes externos, que prevalecem e dominam os órgãos de soberania eleitos, ou manipulam a percepção do eleitorado e moldam as suas escolhas, inquinando o equilíbrio de poder.

Quando muito, os desenvolvimentos de 2020 vieram servir de escudo e desculpa para muitas situações mal resolvidas, que ficaram em suspenso, podendo mesmo dizer-se que o distanciamento entre os cidadãos (ou os sócios), e os seus representantes eleitos democraticamente (ou nem tanto) foi aumentado. Precisamente quando mais se apela à solidariedade e ao humanismo, ao mesmo tempo que se enaltece a ostentação de doações apenas ao alcance dos que não vivem acima das suas possibilidades, ou feitos heróicos (de) notáveis em regime de acumulação de funções. A inversão de valores é frequente quando se trata de construir narrativas para reescrever os factos, ou produzir propaganda de laboratório, intensivamente formulada apesar de instável e inconsistente, em prol de figurantes e seus orientadores.

O afastamento físico entre pessoas motivado pela epidemia, indesejado pela “indústria do futebol”, pois é contrário às grandes aglomerações e concentrações próprias de espectáculos de massas, veio contrabalançar o neo-absolutismo praticado por muitos dirigentes, sempre em busca de oportunidades de manutenção, consolidação e expansão do poder que detêm. A outra face do distanciamento social por eles imposto, palpável no mundo exterior, no campo das relações humanas. Ironicamente, as questões proxémicas que impedem a continuação das competições de outros desportos colectivos de contacto não parecem ser impeditivas da prática do “desporto-rei”, neste caso específico.

Desse ponto de vista, existe uma desvantagem no curto/médio-prazo de quem promove e organiza espectáculos desportivos, face às restrições e à impossibilidade de haver assistência ao vivo nos jogos, isto se forem mesmo continuadas as únicas competições desportivas actualmente (ainda) suspensas, a I Liga e a Taça de Portugal – demonstrando o Estado de Excepção que é o futebol profissional de topo por cá. Já clubes que compõem o quadro competitivo da II Liga e do Campeonato de Portugal não têm tanta expressão, e têm outro tratamento, com as promoções e não-promoções atribuídas “na secretaria” (decisões que geraram discórdia).

Essa vulnerabilidade gera uma desvalorização transversal a todo o edifício associativo e dos clubes desportivos, como em outros sectores culturais, nomeadamente os espectáculos teatrais, musicais, cinematográficos, circenses, os parques temáticos, zoológicos, etc, que vivem da afluência do seu público, os principais clientes da sua oferta, os consumidores dos seus produtos de cultura, entretenimento e lazer. Só alguns têm a possibilidade de subsistir enquanto espectáculo televisivo. Daí também o desespero de reatar seja como for as 2 principais competições. Com a paragem competitiva prolongada, também a desvalorização dos principais activos (futebolistas, treinadores) pode tornar-se problemática, pois as receitas extraordinárias advindas das suas transferências são uma fatia muito importante do financiamento das SADs.

Outra corresponde às operadoras, aos patrocinadores, às autarquias, casas de apostas, máquina do Estado. É também do seu interesse, assim como de quem controla a actividade em Portugal – os clubes/SADs, a federação, a liga, as associações, os árbitros, os agentes, etc – que tudo esteja na “paz do senhor”, ou seja, a funcionar com o mínimo de perturbação. O ambiente futebolístico terá de ser aligeirado e sua atmosfera deverá ser mais limpa e respirável, mais saudável, apesar de toda a instabilidade que lhe é característica. Esperemos que o ar mais puro prometido possa significar mais do que um balão de oxigénio para a já antes debilitada saúde desportiva do futebol português, e signifique também a saúde respiratória de todos os que integrem esses eventos. Para que o potencial desastre não seja maior.

Se Frederico Varandas disse um dia que o circo tinha acabado, certamente até ele já percebeu que o show tem de continuar. O programa eleitoral que apresentou não teve correspondência nem consequência prática, e este contexto fornece mais um pretexto para a discrepância se manifestar. O unilateralismo prepotente, no lugar do diálogo dicotómico que, em teoria e por princípio, devia sempre depender tanto ou mais do lado da maioria que decide do que da minoria “escolhida”, já havia assentado arraiais. As tensões foram agravadas em episódios sucessivos de retaliação, e apesar da suspensão das competições de futebol se arrastar por mais de dois meses e a normalidade não ser garantida nem na próxima época desportiva, não desapareceram.

A nível de funcionamento interno, ainda há questões de tranches e compensações a resolver, da reintegração gradual na normalidade dos funcionários / colaboradores, do reinício do futebol, das secções, das formações, para lá de todas os imponderáveis e incógnitas no planeamento de médio-prazo, que reduzem a margem de erro ao mínimo. Para resgatar a união perdida que prometeu aos Sportinguistas, esta administração terá de aproveitar a pausa competitiva para cativar e pacificar a convivência em vez de ofender e enxotar os adeptos, como fez tantas vezes antes. Talvez o desafio mais difícil de todos os que terá pela frente, e agora sem o mesmo espaço de manobra, como também não tem na gestão, onde tudo está por um fio.

Não mais vai poder impingir lugares anuais e bilhetes a preços exorbitantes ou fazer descalçar os espectadores à entrada, com o argumento de lhes revistar o calçado, para trazer de volta quem andou a humilhar e a acossar no Estádio e no Pavilhão, antes de o presidente do Sporting ter sido reintegrado no Exército quando o EE entrou em vigor. Com a cobertura e justificação dessas acções discriminatórias em grande parte da comunicação social especializada e generalista, e no próprio Jornal e TV.

Vai ter de haver outro discurso, que reduza o atrito, e não a agressão declarada e a propaganda de guerra fria. Sinal disso é a mudança da política editorial do Jornal Sporting, assumida pelo novo director e administrador da SAD André Bernardo, substituindo de uma assentada Miguel Cal (ex-administrador) e Rahim Ahamad (ex-director do Jornal), que não deixam saudades. Entre transformações e mudanças de paradigma, num primeiro editorial algo desconexo, rasurou os antecedentes e apregoou um futuro melhorado que está a ser implementado.

É importante estar atento às disparidades entre iguais e ciente dos riscos que implicam, que começam por ser graduais e se acentuam conforme os interesses dos mais poderosos se impõem e substituem aos “superiores interesses do Sporting”, à vontade inalienável da massa associativa. Para evitar o abuso de alguns, julgando-se todos-poderosos, sobre os adeptos, o sangue do Clube, e não vassalos tributários. Esta dialéctica latente, pré-existente à crise pandémica (que vai marcar uma época), parecendo adormecida ou esquecida, entretanto por ela empolada, afecta e pode determinar potencialmente muito do que será o futuro associativo e desportivo do Sporting (sua vocação e essência).

Mesmo por alegada defesa do bem comum e da saúde pública, não se pode impedir as escolhas das pessoas e deter a vontade das maiorias indefinidamente, privá-las dos seus direitos constitucionais, legais e estatutários, para salvar uma qualquer pele institucional, enquanto a estrutura da própria instituição (e da sociedade) é desmantelada. Há que encontrar soluções válidas o quanto antes e aplicá-las.

Texto por: HULK VERDE

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Comments

  1. Neca Pinto

    Excelente análise.
    Esta direcção tem dado provas mais do que suficientes de que está mais interessada na sua própria defesa e na preservação da sua (fraca) imagem, do que em defender os interesses do Sporting. E quando assim é, o futuro é sombrio.