RUGIDO VERDE

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Sexta-feira, Março 29, 2024

A brilhante carreira de Manuel Marques “Manecas” – Parte 1

Por Pitta Castelejo

Manuel Marques, envergando a antiga camisola dos «leões». De notar, que não falta o inseparável lenço branco.

Manuel Soares Marques, que no mundo da bola se popularizou pelo tratamento familiar de Manecas, começou a jogar com uma bola trapeira, aos 13 anos! Ele e um grupo de rapazotes da mesma idade, davam largas ao seu entusiasmo num vasto terreno situado para as bandas do Campo Grande. Cedo porém, reconheceram a necessidade de ir mais longe, e assim, quotizaram-se e adquiriram uma bola das grandes, a «sério», fundando de seguida um grupo que se denominou Desportivo do Campo Grande.

A mocidade e o jeito dos catraios levou-os a disputarem desafios com outros grupos, não tardando que as taças, os bronzes e os objectos de arte em disputa, fossem por eles arrebatados. Torneio onde entrasse o Desportivo, já se sabia quem ganhava. Faziam parte da equipa, entre muitos outros, Armelim, José Alcobia, Pedro Costa e Júlio de Almeida, que mais tarde ingressaram em clubes de primeira grandeza, como o Benfica, Sporting e Belenenses. Manuel Marques, devido à sua pouca idade, só jogava uns encontros por outros. Como quase todas as pugnas eram travadas no campo das Fonsecas, de gratíssimas recordações, após o desafio se a vitória havia sorrido, organizavam uma marcha, ruidosa e cantante, que até ao Campo Grande, ostentando de forma bem visível o troféu ganho, não parava de dar vivas ao clube e aos miúdos jogadores.

O jeito e a habilidade do neófito Manecas começou a dar nas vistas e um gaiato seu amigo, de nome José Abreu, mais conhecido pelo «Padeirinho», que alinhava nos infantis do Sporting, desafiou-o para ir treinar no campo dos «leões». Submetido a «exame» pelo treinador húngaro John, não desiludiu, mas como o campeonato infantil estava prestes a atingir o seu termo, só poderia alinhar na época seguinte, altura em que devia comparecer de novo, As palavras entraram-lhe por um ouvido e saíram por outro. Não mais pensou no caso, continuando a dedicar todo o interesse ao quase invencível Desportivo do Campo Grande.

Não desistiu, porém, o persistente Abreu, que na temporada de 1932/33, lhe recordou ser chegado o momento de voltar a treinar no Sporting. Muito instado, lá foi, tendo mostrado as suas «habilidades» perante o húngaro Jeny, então o treinador das equipas leoninas. De tal forma agradou, que o examinador lhe deu 2$50 para tirar as fotografias nos Restauradores. Mas, o endemoninhado garoto, ao ver-se com o dinheiro, não resistiu à tentação de o empregar em um bilhete, para assistir a uma sessão de cinema. A película era daquelas que fazem o encanto da miudagem… Sem dinheiro e sem retratos, só havia um caminho a seguir: não aparecer mais no Sporting. E se bem o pensou, melhor o fez.

Sabedor do que se passara, o bom do «Padeirinho», não hesitou em contar tudo a Mr. Jeny. Este achou graça à criancice e pediu, com insistência, para que Manecas voltasse. Com fundado receio o nosso «herói» apresentou-se a um novo treino. Findo ele, assinou a ficha que o havia de ligar ao Sporting, não só naquela época, mas durante os 18 anos da sua magnífica carreira que vai terminar no próximo dia 5 de Outubro. O seu primeiro cartão de jogador, foi assinado pelo director-secretário da A. F. L., Sr. João Carvalho dos Santos. Coube-lhe o número de jogador, 15.073, nessa já recuada época de 1932-1933!

25 minutos na categoria principal convenceram o pai a deixá-lo jogar

Escolhido para ocupar o lugar de defesa esquerdo, participou em três prélios, marcando excelente presença. A sua intuição, voluntariedade e alegria, fizeram com que o treinador e os dirigentes o rodeassem de um carinho particular. Entretanto, a turma principal disputaria um desafio contra uma selecção brasileira da qual faziam parte jogadores famosos, como Leónidas, Patesco, Carvalho Leite, Waldemar, Luizinho, Canalli, Roberto Pedrosa, Sílvio, Luís Luz, Ariel e Martin (cap.) Seria oportuno, integrar na categoria de honra, ao lado dos consagrados, entre eles Mourão, Pireza, Soeiro, João Cruz, Rui Araújo, Abelhinha, Jurado e Faustino, o jovem Manuel Marques, um principiante que somente dera provas em três encontros? O incentivo, valia o risco. De resto, em qualquer altura podia ser substituído. Manecas jogou durante 25 minutos, portando-se de acordo com as esperanças nele depositadas. Esta proeza não é vulgar e por isso mesmo não podia ficar sem registo.

O pai era avesso a que o filho jogasse a bola, obrigando-o a servir-se de vários ardis para levar por diante o seu propósito. E, não foram poucas as vezes que o rapazinho, após um desafio, recebeu reprimendas e alguns fortes bofetões. A mãe, uma santa senhora, era a boa fada que intervinha com oportunidade, aquietando o ânimo do marido.

Ao encontro entre o Sporting e a Selecção brasileira, quem havia de assistir? O Marques, pai. Decorria o desafio, como é de uso, quando a certa altura o jogo foi interrompido. Um homem saiu e outro entrou. Este, um garoto que trazia um lenço branco preso aos calções e se foi postar no lugar de interior-esquerdo. Recomeçado o jogo, um amigo de Marques, pai, pergunta-lhe de súbito: Conheces o jogador que acabou de entrar? O interpelado concentrou toda a atenção no alvejado e daí a instantes respondeu laconicamente: Parece que é o finório do meu filho Manecas. Com uma gargalhada, o amigo confirmou, exclamando: É ele mesmo sem tirar nem pôr!

Ao chegar a casa, Manuel Marques, o jogador que havia alinhado com os «ases», vinha radiante pela façanha, embora triste no íntimo por o seu clube ter perdido por 6-0. O pai, com o ar mais inocente deste mundo, começou a falar do jogo, tecendo várias considerações. O filho percebeu, sem esforço, que o pai o reconhecera. Não se deu, todavia, por achado. Ao jantar, a conversa continuou sobre o mesmo assunto, até que se ouviu esta perentória afirmação: Hoje vi-te jogar. Manecas quase engoliu a colher e a mãe, sabedora já do que se passara pelo outro filho, levantou-se muito nervosa e disse: Não ralhes com o pequeno. Um silêncio grande. Não se ouvia o zumbir de uma mosca. Então, o chefe da família, com um sorriso, – quem sabe se de orgulho por ter visto o filho jogar ao lado dos ídolos, – respondeu, dirigindo-se a Manecas: A partir de hoje tens o meu consentimento para jogar, Sê sempre leal, honrado e digno. Que Deus te ajude meu filho.

Até no fim da temporada manteve-se nos infantis, tendo a equipa obtido o segundo posto no Campeonato.

SPORTING, 1 ZIDENICE, 1 (20/19/1935) – A turma leonina: Em pé, da esquerda para a direita: Soeiro, Jaguaré, Vianinha, Jurado, Pireza, Mourão, Serrano e Raúl Silva; de joelhos: Manuel Marques, Galvão, N. N., Rui Araújo, Dyson, Alcobia e Lopes

Ascensão rápida

Em 1933/34 foi inscrito em terceiras categorias, mas efectuadas duas pugnas, ascendeu à categoria superior. O valor do jovem atleta já não deixava dúvidas a ninguém. Contudo, era necessário, ir graduando o seu esforço, acompanhando de perto a sua preparação e aperfeiçoamento, com vista ao futuro. No ano seguinte, Filipe dos Santos, o saudoso jogador que ao tempo treinava as equipas sportinguistas, depois de o ver actuar com regularidade e profícua segurança, passou a incluí-lo em reservas, a interior-esquerdo primeiro, depois a defesa do mesmo lado e ainda em outros lugares. Fixado nesta categoria, passou a ser chamado, de vez em quando, à categoria imediata, aquela que é a ambição de todos os que praticam modalidades desportivas. Com o treinador Possak, tomou parte em vários encontros particulares, integrado na equipa de Honra, Entre tantos no jogo com o famoso Zidinice.

Com a entrada do húngaro Josef Szabo para treinador, o trabalho redobrou. Treinos aturados, pormenores de jogo devidamente estudados, lições teóricas, preparação física intensa. Com boa vontade, sempre na brecha, ansioso por ser «alguém» no futebol, dedicou-se com alma e coração ao acatamento das ordens recebidas. O seu merecimento subia a olhos vistos. O futebol podia contar com um elemento de mérito e o clube com um sólido esteio.

Foi neste período, em que dividia a actividade pelas reservas e honras, que tomou parte num renhido desafio contra o Benfica, efectivado no já desaparecido campo das Amoreiras, em condições muito singulares. Após ter jogado um encontro de reservas, por sinal bem perdido por 3-1, foi «pescado» à última hora para entrar de novo em campo, pois tornava-se imprescindível a sua presença no jogo grande. Não hesitou o pequeno-grande jogador. Podiam contar com o denodo, alma e espírito de luta costumados. Foi um gigante. Convenceu os companheiros, adversários, público e crítica. Jogando a médio-esquerdo, frente a uma linha avançada composta por Torres, Xavier, Espírito Santo, Rogério e Valadas, contribuiu de maneira eficaz para o empate a duas bolas.

Em 1936-1937, fixou-se definitivamente no grupo principal dos «leões». Não estranhou o ambiente nem acusou a responsabilidade, Já conhecia o meio e estava afeito ao jogo dos companheiros nas sucessivas andanças dos desafios. Com a mesma aplicação de sempre, pontual aos treinos, foi vinculando mais e mais a personalidade forte de atleta brioso e consciente dos seus deveres. Ser titular da primeira categoria de um clube, com a importância do Sporting, era honra que desvanecia. Marques nunca esqueceu os mais elementares preceitos de disciplina e a estrita observância de uma vida regrada e conducente à manutenção de uma forma física que servisse de forma completa à sua missão de atleta pundonoroso!

Sucederam-se os desafios, naquela continuidade própria da marcha dos campeonatos, Teve horas de alegria desbordante, a par de outras de sabor amaríssimo. Ganhou e perdeu. Actuou com brilho e carburou mal ou menos bem. Mas, em todas as contingências, foi ele próprio; correcto, aprumado, leal, esforcado!

Esteve quase a ser campeão de Portugal, título que seria o corolário lógico de uma época em cheio, e o melhor galardão que compensaria e assinalaria a sua entrada na equipa dos melhores do seu clube. Não seria o primeiro, manda a verdade que se diga, pois já na época de 1934-1935, arrebatara o campeonato de 2as categorias, com 16 encontros realizados, mas há uma diferença profunda entre um campeonato regional de categorias inferiores e um título de campeão de Portugal.

Como se goraram as esperanças? Como perdeu o Sporting o desafio da final com o Futebol Clube do Porto, na cidade da velha Universidade? O que vamos narrar é do conhecimento dos aficionados antigos, mas os mais novos só agora o saberão. Decorria o jogo com alternativas de comando dos dois adversários, quando em determinado momento, o avancado-centro nortenho, Roboredo, meteu a mão à bola. Soou um apito. Os jogadores pararam e Jurado, defesa leonino, muito naturalmente agarrou o esférico com as mãos e foi colocá-lo no sítio aonde a falta fora cometida, para marcar o «livre». Com bastante espanto e consternação nossa, o árbitro ordenou o castigo máximo, porquanto não fora ele que apitara, mas sim outrem que depois se apurou ter sido um adepto dos portuenses. Vianinha, que já envergara a camisola do Sporting e vestia agora a do F. C, do Porto, atirou a contar. Perdera-se o desafio, sem remissão!

(continua na Parte 2)

Data: 20/09/1950
Local: Revista Stadium

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