O homem das canas
Durante parte da minha juventude convivi com a história do homem das canas.

Desde que me lembro de ir à escola que, regularmente, o rumor que o homem das canas estava de volta, emergia como uma verdade temida e inquestionável.
A cada 2 ou 3 anos, a história ganhava cada vez mais força: no caminho entre a povoação e a escola, mal iluminado e com poucas casas, um dos lados da estrada estava coberto por um canavial.
Dizia-se que um homem ali se escondia, à espera das crianças, com o intuito de as raptar. Quem era essa misteriosa criatura que estarrecia as crianças e atormentava os pais?
Os anos passavam e a história do homem das canas crescia em detalhes e intensidade: o homem era careca e conduzia um Wolskwagen carocha. Escondia-se por entre as canas nos finais de tarde de Inverno, quando a noite cobria a estrada pobremente iluminada.
As crianças eram aconselhadas a andar em grupo, sempre com os olhos no canavial do outro lado do caminho. Os pais organizavam-se para levar e trazer os miúdos da escola. Alguns, mais cautelosos, levavam lanternas e mesmo facas, não fosse o homem das canas saltar, inesperadamente, do seu esconderijo. Eram semanas de angústia e terror.
Uns anos depois, a história tomou contornos mais dramáticos quando, durante um dos períodos do “retorno” do homem das canas, um indivíduo foi apanhado pela populaça e quase linchado em praça publica, não fosse a intervenção da polícia.
O homem capturado era careca e conduzia um carocha. Para agravar a situação, trazia uma menina no banco de passageiro da viatura.
Verificou-se, posteriormente, de que se tratava de um avô que tinha levado a neta a passear. Um forasteiro que teve a infelicidade de estar no lugar errado, na hora errada. Quase pagou com a vida.
A história do homem das canas esmoreceu com os anos. No entanto, na última década, este tipo de histórias voltou a ressurgir em força, mas desta vez à escala nacional, promovidas por determinados órgãos de comunicação social, ávidos de audiências e ganhos comerciais.
Em vez da voz do povo, passou a ser a voz de uma espécie de “jornalistas” a escolher os novos “homens das canas”, criando narrativas próprias, convencendo tudo e todos de que apenas retratam a realidade. Tal como o povo, esse “jornalismo” adiciona detalhes às histórias que conta, sabendo que vai acicatar a população, mesmo que para tal tenha de distorcer completamente a imagem dos seus vilões.

Tal como na altura, é irrelevante que não existam evidências da existência do “criminoso” e dos actos ilícitos que praticou.
Se alguém diz que ele existe, é porque isso é uma realidade. “Se a televisão ou o jornal o diz, quem somos nos para os questionar?”.
Na história do homem das canas, um inocente quase pagou com a vida, não fosse a intervenção pronta das forças policiais.
Hoje em dia existem indícios, cada vez mais fortes, de que certos elementos do sistema policial e judicial, contribuem para manter e mesmo empolar as histórias que os jornalistas “inventam” e as agendas que eles seguem.
Não existe pensamento mais perturbador do que a possibilidade, nas histórias modernas dos homens das canas, de que não exista qualquer salvaguarda que nos traga de volta à realidade e aos factos.
Temo que a agitação popular exija um sacrifício qualquer, no altar das decisões editoriais e judiciais. Seja o homem das canas culpado… ou não!



(Há vultos nas canas e por trás das câmaras
Sombras nas cavernas e silhuetas em camas
Bacanais de bacanas e policiais sacanas
Bombas em paióis e casernas de maganas
Histórias de faca e alguidar semi-profanas
Que nuas vão às luas russas e americanas
Entram pelas ruas sondas chinesas e indianas
As sombras dos maçons avivam suas flamas
Revelam montagens, figuras sujas e arcanas
Sinistras personagens corrompem criaturas humanas
Como cartas de tarô ciganas ou marranas
Marcadas com notas impressas e classificações estranhas
Comunicações de pirómanos sacripantas
Que marcam as horas do complô cartesianas
Criando robôs sem alma, autómatos sem chamas
Os pais e os avôs do homem das chicanas)